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DIÁLOGO ABERTO, O ORIGINAL, é um espaço interativo cuja finalidade é a discussão. A partir de abordagens relacionadas a muitos temas diversos, dos mais complexos aos mais práticos, entre teologia, filosofia, política, economia, direito, dia a dia, entretenimento, etc; propõe um novo modo de análise e argumentação sobre inúmeras convenções atuais, e isso, em uma esfera religiosa, humana, geral. Fazendo uso de linguagem acessível, visa à promoção e à saliência de debates e exposições provocadoras, a afim de gerar ou despertar, em o leitor, um espírito crítico e questionador.

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segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Joãozinho Gay



Joãozinho era Gay e todos sabiam. Desde pequeno, demonstrava certo tipo de comportamento “diferente” dos outros garotos. Era amigo das meninas, não brincava de carro, de polícia e ladrão, não jogava bola. Seu lugar preferido era grudado na barra da saia da mãe e sentado com suas primas, quando essas o vinham visitar nos feriados, brincando com suas bonecas e fazendo penteados exóticos. Todas as pessoas o achavam lindo e fofo, pois era sensível e extremamente educado, mas ao mesmo tempo o olhavam meio que surpresos, pois seu comportamento era muito diferente do que se esperava de um garoto “normal”, como tudo deveria ser. Contudo, ninguém ousava arriscar um comentário, sua mãe, muito temperamental, não aceitava que falassem de seu querido Filho, logo gritava aos berros “quem cuida desse garoto sou eu, não ouse dar pitaco”.

Joãozinho cresceu e sua família, bastante religiosa, sempre levava o rapaz todos os sábados e domingos na igreja, nos cultos da mocidade e de celebração do dia do Senhor. Certo dia na escola, Joãozinho começa a trocar olhares com um menino de sua classe e assim permaneceu por horas, enquanto sua professora permanecia falando sobre biologia e a teoria da evolução. Sentiu-se fascinado pelo rapaz. Suas curvas, seu cheiro, seus cabelos negros, seu jeito simples e modesto e seu desajeitado sorriso que o fazia ir ás nuvens. Seus colegas logo começaram a perceber que de fato Joãozinho parecia muito estranho e seu comportamento era muito diferente. No recreio, todos iam para o pátio, jogar bola e brincar de lutinha, enquanto Joãozinho ficava no parque com as meninas, conversando assuntos de moda, beleza e penteando seus cabelos, o que elas adoravam. Logo começaram os apelidos, os xingamentos e as investidas dos meninos mais fortes da classe contra Joãozinho. Riam de sua cara, o chamavam de “bichinha” e diziam que ele era uma aberração da natureza. As meninas sempre protegiam o pobre rapaz, pois o amavam, era um ótimo amigo, tinham um bom coração e as fazia rir incessantemente, além de estar sempre de bom humor. Certo dia, Joãozinho foi pego no banheiro da escola, tentando beijar aquela sua paixonite da turma e logo deu se um alarde geral.

Seus pais foram chamados na escola e a situação foi dita. Ele não poderia estudar mais ali, era um episódio irremediável, e a escola de tradição protestante clássica, não admitia tal comportamento. Foram os dois expulsos e Joãozinho tomou uma surra, daquelas bem dadas de seu pai, com a cinta de couro, para aprender a se comportar como “homem”. Sua mãe lhe disse que era muito errado aquele tipo de comportamento e que ele não deveria jogar o nome de sua família no lixo e o levou para o pastor da igreja, para que pudesse orar pelo rapaz e aconselhar a tomar uma postura. O pastor que também era psicólogo se dispôs a tratar espiritualmente e psicologicamente daquele adolescente, a fim de transformar seu comportamento e mudar seu destino. Assim ele dizia para a mãe de Joãozinho, “esse mal tem cura, ainda mais que foi descoberto cedo, a senhora não precisa se preocupar”.

Joãozinho se sentia como se fosse à pior criatura do mundo, sem amigos, longe de sua escola favorita, olhado com desconfiança por todos e culpado por sentir que havia causado uma vergonha enorme aos seus pais, vivia seus dias, se dedicando ao que gostava de fazer, pintar em telas médias com tinta guache, desenhando look’s femininos e cortes de cabelo masculinos. Era quase um artista mirim. O que Joãozinho não conseguia entender era porque ele não conseguia se livrar daquele suposto mal que de todos falavam que ele possuía. Não entendia de onde tinha surgido e o porquê sentia atração física e emocional por aquele colega, que até hoje não havia esquecido.

Quando completara 18 anos, Joãozinho ainda era um homossexual enrustido. Sentia ainda todos os desejos que sentira dentro daquela sala, olhando para seu colega, contudo tinha que constantemente disfarçar seus trejeitos e suas vontades e paixões, pela pressão social dos mais machistas e a orientação religiosa de sua família. Ia ainda à igreja todos os finais de semana, mas se sentia um lixo, quando o pastor, ao pregar seu sermão, atacava veementemente sua sexualidade dizendo “o homossexualismo é coisa do diabo, Deus deseja libertar a sua vida através de seu filho Jesus” e então voltava para casa deprimido, sentido que havia alguma coisa de errado com ele e que sua vida era um tremendo equívoco para todos os que o cercavam, exceto para sua amigas que lhe apoiavam e o amavam.

Certo dia, Joãozinho chegou a sua casa com um rapaz, chamou os seus pais e disse “quero apresentar para vocês o meu namorado, eu o amo e gostaria de receber a permissão de meus pais para termos um relacionamento público e sério”. Ao ouvir a notícia, sua mãe começou a chorar e a gritar “meu Deus, meu Deus, o que fiz pra merecer isso?!”, enquanto seu pai, ex-militar, arrogante do jeito que era lhe virou a mão no rosto e começou a lhe chutar, gritando “vergonha, vergonha, vergonha, seu safado, honre sua família!” e seu quase namorado saiu correndo, temendo que o pior acontecesse para ele também.

No outro dia, seu pai, bastante arrependido do que fizera no dia anterior, foi até seu quarto para pedir desculpas e reconciliar-se. Quando abriu a porta, deparou com Joãozinho, morto, pendurado pelo pescoço em um lençol que estava amarrado na parte superior da barra da janela de ferro. Havia se suicidado. Em cima da cama, havia uma carta que dizia:

“Decidi que viver não era mais uma opção. Envergonhei á todos que conhecia. Meus pais, meus amigos, minha igreja e a sociedade em que vivo. Amo á todos, mas creio que nunca poderia mudar, sempre fui dessa forma, é maior do que eu mesmo. Prefiro morrer ao transformar minha vida e a vida dos que me cercam numa constante decepção. Espero que me perdoem e que Deus me aceite, como pai de amor que é.”

Mal sabia Joãozinho que ele não possuía uma doença, mas sim aqueles que diziam que o mesmo era doente. Na terra de cegos, quem tem olhos se suicida.

Rodrigo Mascarenhas


Mar Vermelho: a travessia que não existiu


1. Texto bastante interessante. Escolhido pelo Diálogo Aberto, O Original, para esclarecer uma pequena parcela dessa temática que é densa. 

Mar Vermelho: a travessia que não existiu

Paulo da Silva Neto Sobrinho

“... e se recusarão a dar ouvidos à verdade, entregando-se às fábulas
(Paulo, 2Tm 4,4).


“... se admitíssemos que Deus faz alguma coisa contrária às leis da natureza, seríamos também obrigados a admitir que Deus age em contradição com a sua própria natureza, o que é um absurdo”. 
(ESPINOSA, 1670).

Introdução

Relata-nos, os textos sagrados, que o povo hebreu ao sair do Egito, defrontou-se com o Mar Vermelho, que se dividiu em duas muralhas após Moisés estender a mão sobre ele, de modo que todo o povo o atravessou a pé enxuto. Os egípcios, que os perseguiam, foram tomados pelas águas quando se juntaram novamente, perecendo todo o exército do Faraó.
Apesar de que esse “milagre” sempre nos impressionou, nunca deixamos de questionar se realmente isso aconteceu como está relatado na Bíblia. Pelo que vimos nos filmes épicos é muita água sô! Veremos, neste estudo, se conseguimos desvendar esse mistério.

As passagens relacionadas

Das dez Bíblias fonte de nossa pesquisa, somente a Bíblia de Jerusalém traz a verdadeira denominação do local da passagem, cuja narrativa é a que colocamos nas passagens abaixo.
Ex 13, 17-18: Ora, quando o Faraó deixou o povo partir, Deus não o fez ir pelo caminho no país dos filisteus, apesar de ser o mais perto, porque Deus achara que diante dos combates o povo poderia se arrepender e voltar para o Egito. Deus, então, fez o povo dar a volta pelo caminho do deserto do mar dos Juncos, e os israelitas saíram bem armados do Egito.
Em nota de rodapé explicam:
A designação “o mar dos Juncos”, em hebraico yam sûf, é acréscimo. O texto primitivo dava apenas uma indicação geral: os israelitas tomaram o caminho do deserto para o leste ou o sudeste. – o sentido desta designação e a localização do “mar de Suf” são incertos. Ele não é mencionado na narrativa de Ex 14, que fala apenas do “mar”. O único texto que menciona o “mar de Suf” ou “mar dos Juncos” (segundo o egípcio) como cenário do milagre é Ex 15,4, que é poético.
Veremos, mais à frente, que Keller reforça essa afirmativa sobre a designação desse local.
Ex 14, 21-28: Então Moisés estendeu a mão sobre o mar. E Iahweh, por um forte vento oriental que soprou toda aquela noite, fez o mar se retirar. Este se tornou terra seca, e as águas foram divididas. Os israelitas entraram pelo meio do mar em seco; e as águas formaram como um muro à sua direita e à sua esquerda. Os egípcios que os perseguiam entraram atrás deles, todos os cavalos de Faraó, os seus carros e os seus cavaleiros, até o meio do mar... Moisés estendeu a mão sobre o mar e este, ao romper da manhã, voltou para o seu leito. Os egípcios, ao fugir, foram de encontro a ele. E Iahweh derribou os egípcios no meio do mar. As águas voltaram e cobriram os carros e cavaleiros de todo o exército de Faraó, que os haviam seguido no mar; e não escapou um só deles.
Transcrevemos da nota de rodapé:
Esta narrativa apresenta-nos o milagre de duas maneiras: 1º) Moisés levanta a sua vara sobre o mar, que se fende, formando duas muralhas de água entre as quais os israelitas passam a pé enxuto. Depois, quando os egípcios vão atrás deles, as águas se fecham e os engolem. Esta narrativa é atribuída à tradição sacerdotal ou eloísta. 2º) Moisés encoraja os israelitas fugitivos, assegurando-lhes que nada têm que fazer. Então, Iahweh faz soprar um vento que seca o “mar”, os egípcios ali penetram e são engolidos pelo seu refluxo. Nesta narrativa, atribuída à tradição javista, somente Iahweh é que intervém; não se fala de uma passagem do mar pelos israelitas, mas apenas da miraculosa destruição dos egípcios. Esta narrativa representa a tradição mais antiga. É somente a destruição dos egípcios que afirma o canto muito antigo de Ex 15,21, desenvolvido no poema de 15,1-18. Não é possível determinar o lugar e o modo deste acontecimento; mas aos olhos das testemunhas apareceu como uma intervenção espetacular de “Iahweh guerreiro” (Ex 15,3) e tornou-se um artigo fundamental da fé javista (Dt 11,4; Js 24,7 e cf. Dt 1,30; 6,21-22; 26,7-8). Este milagre do mar foi posto em paralelo com outro milagre da água, a passagem do Jordão (Js 3-4); a saída do Egito foi concebida de maneira secundária à imagem da entrada em Canaã, e as duas apresentações misturam-se no cap. 14. A tradição cristã considerou este milagre como uma figura da salvação, e mais especialmente do batismo (1Cor 10,1).
Embora muitas vezes explicam alguma coisa sobre passagens bíblicas, como vimos anteriormente, não as levam em consideração para análise de outras, assim insistem em que tal ocorrência se trata de “milagre”, mas como já deixamos transparecer, logo de início, só se por delírio poético do autor bíblico.
Ficamos em dúvida de como as coisas realmente aconteceram, já que pelo texto da Bíblia Moisés estendeu a mão sobre o mar, enquanto que o historiador Josefo, dizendo que o que conta foi encontrado nos Livros Santos, narra da seguinte forma:
Este admirável guia do povo de Deus, depois de ter acabado a sua oração, tocou o mar com sua vara maravilhosa e no mesmo instante ele se dividiu, para deixar os hebreus passar livremente, atravessando-o a pé enxuto, como se estivessem andando em terra firme. (História dos Hebreus, pág. 87).
Por outro lado, Josefo narra de forma espetacular o retorno das águas ao leito do mar, com o perecimento dos egípcios, coisa não encontrada na Bíblia da mesma forma. Vejamos:
O vento juntara-se às vagas para aumentar a tempestade: grande chuva caiu dos céus; os relâmpagos misturaram-se como ribombo do trovão, os raios seguiram-se aos trovões e para que não faltasse nenhum sinal dos mais severos castigos de Deus, na sua justa cólera, punindo os homens, uma noite sombria e tenebrosa cobriu a superfície do mar; do modo que, de todo esse exército, tão temível, não restou um único homem que pudesse levar ao Egito a notícia da horrível catástrofe. (História dos Hebreus, pág. 87).

A rota inicial do Êxodo

Partiram de Ramsés para Sucot, daí seguiram a Etam, de onde foram até Piairot, ponto em que partiram e atravessaram o mar, acampando em Mara, no Deserto de Etam. (Ex. 13,20; 14.2.9.15; 15,22; Nm 33, 5-8). Ver no mapa 1 abaixo, cuja rota está traça em linha vermelha:
Mapa 1: Ampliação do local da passagemMapa 2: Visão global da rota do êxodo
Observar no Mapa 1 (destaque da área realçada no retângulo azul no Mapa 2) que na região da passagem pelo “Mar Vermelho” existe até uma rota comercial (linha pontilhada), demonstrando que não se necessitava de nenhum milagre para passar pelo local. Keller, num mapa colocado em seu livro E a Bíblia tinha razão..., informa que essa área é denominada de “mar dos Juncos”.
Bem abaixo, ainda no Mapa 1, na região indicada como de ajuntamento de água, se refere ao Golfo de Suez, não se trata especificamente do Mar Vermelho, que fica bem mais abaixo, conforme se pode ver mais claramente no Mapa 2.
Temos então pela geografia da região, que o Mar Vermelho é, vamos assim dizer, divido pela Península do Sinai em dois golfos, o de Suez e de Ácaba. Como se diz popularmente “cada um é cada um”, ou melhor, geograficamente falando, golfo é golfo, não é o mar propriamente dito.

Algumas explicações dos tradutores

Fora as que já fornecemos, logo após as passagens anteriormente transcritas, seria ainda interessante lermos outras que se nos apresentam.
O local da travessia do Mar Vermelho foi provavelmente a extensão norte do Golfo de Suez, ao sul do atual porto de Suez. Embora a expressão literal seja “mar dos Juncos”, a referência é ao mar Vermelho, não simplesmente a alguma região alagadiça. (Bíblia Anotada, pág. 98, em relação à Ex 13,18).
Mar Vermelho: lit. “mar dos Juncos”. A expressão designa tanto o atual mar Vermelho como também a região pantanosa e de lagunas, atravessada hoje pelo canal de Suez. É o cenário da passagem dos israelitas pelo “mar Vermelho” (Bíblia Vozes, pág. 91, em relação à Ex 10,19).
A descrição da passagem pelo mar Vermelho corresponde a um fenômeno de ordem natural, como o sugere a menção do “vento forte” (v.21) que põe o mar, isto é, uma região pantanosa, em seco. Tal fenômeno foi providencial para salvar os israelitas (v.24) e fazer perecer os egípcios (v.27): de madrugada as condições climáticas foram favoráveis à passagem segura dos israelitas; de manhã mudaram bruscamente e os egípcios pereceram. Nisto Israel viu a mão providencial de Deus (v.31), expressa pela nuvem e pelo fogo (13,21), pelas águas que formam alas para os israelitas passarem (14,22) e pela vara milagrosa de Moisés (v.16.21.26). (Bíblia Vozes, pág. 97, em relação à Ex 14,21-31).
Em toda essa narração da passagem do mar Vermelho é difícil estabelecer o que haja de verdadeiramente histórico e o que haja de fruto de reelaborações épicas. Tampouco é possível indicar o ponto exato em que se deu a travessia. Por certo, há uma intervenção milagrosa de Deus que, embora servindo-se de fenômenos naturais, pode ordená-los no tempo e lugar para que facilitassem a fuga dos hebreus e o castigo dos egípcios. Em todo o A.T. a passagem do mar Vermelho foi sempre considerada como o exemplo mais esplêndido do socorro providencial de Deus, e em o N.T. é ainda considerada como a figura da salvação, mediante a ablução batismal. (Bíblia Vozes, pág. 97, em relação à Ex. 14,15-31).
Mesmo que em algumas delas se reconheça que não é o mar Vermelho, mas o mar dos Juncos, ou que a passagem é um fenômeno de ordem natural, não deixam de envidar esforços em seus argumentos para levá-la à conta de milagre, contrariando o bom senso em detrimento da fé racional.

A arqueologia confirma os fatos?

Agora sim é que iremos ver o que Keller tem mesmo a nos dizer sobre esse assunto. Vejamos:
Esse “milagre do mar” tem ocupado incessantemente a atenção dos homens. O que até agora nem a ciência nem a pesquisa conseguiram esclarecer não é de modo algum a fuga, para a qual existem várias possibilidades reais. A controvérsia que persiste é sobre o cenário do acontecimento, que ainda não foi possível fixar com certeza.
A primeira dificuldade está na tradução. A palavra hebraica “Yam suph” é traduzida ora por “mar Vermelho”, ora por “mar dos Juncos”. Repetidamente se fala do “mar dos Juncos”: “Ouvimos que o Senhor secou as águas do mar dos Juncos[1] à vossa entrada, quando saístes do Egito...” (Josué 2.10). No Velho Testamento, até o profeta Jeremias, fala-se em“mar dos Juncos”. O Novo Testamento diz sempre “mar Vermelho” (Atos 7.36; Hebreus 10.29).
Às margens do mar Vermelho não crescem juncos. O mar dos juncos propriamente ficava mais ao norte. Dificilmente se poderia fazer uma reconstituição fidedigna do local – e essa é a segunda dificuldade. A construção do Canal de Suez no século passado modificou extraordinariamente o aspecto da paisagem da região. Segundo os cálculos mais prováveis, o chamado “milagre do mar” deve ter acontecido nesse território. Assim, por exemplo, o antigo lago de Ballah, que ficava ao sul da estrada dos filisteus, desapareceu com a construção do canal, transformando-se em pântano. Nos tempos de Ramsés II, existia ao sul uma ligação do golfo de Suez com os lagos amargos. Provavelmente chegava mesmo até mais adiante, até o lago Timsah, o lago dos Crocodilos. Nessa região existia outrora um mar de juncos. O braço de água que se comunicava com os lagos amargos era vadeável em diversos lugares. A verdade é que foram encontrados alguns vestígios de passagens. A fuga do Egito pelo mar dos Juncos é, pois, perfeitamente verossímil. (E a Bíblia tinha razão..., pág. 146).
[1] As traduções em português consultadas citam sempre “mar Vermelho”. (N. do T.)
As observações de Keller se encaixam perfeitamente com algumas das explicações dadas pelos tradutores, ficando desta forma sem propósito qualquer argumento contrário, a não ser que algum dia a ciência venha em socorro aos que querem enxergar as coisas sob ponto de vista religioso, sustentando os fatos como milagres.

Fatos semelhantes

A respeito da passagem do mar Vermelho, Josefo nos relata outro acontecimento idêntico:
“... ninguém deve considerar como coisa impossível, que homens, que viviam na inocência e na simplicidade desses primeiros tempos, tivessem encontrado, para se salvar, uma passagem no mar, que se tenha ela aberto por si mesma, quer isso tenha acontecido por vontade de Deus, pois a mesma coisa aconteceu algum tempo depois aos macedônios, quando passaram o mar da Panfília, sob o comando de Alexandre, quando Deus se quis servir dessa nação para destruir o império dos persas, como o narram os historiadores que escreveram a vida desse príncipe. Deixo, no entanto, a cada qual que julgue como quiser”. (História dos Hebreus, pág. 87).
Observar que nesta fala de Josefo é dito dum fato semelhante acontecido com os macedônios, que também a pé enxuto passaram o mar da Panfília.
No livro de Josué (3,14-17) o povo de Israel atravessou o rio Jordão, após as suas águas terem se dividido. Muitos também têm esse episódio como um milagre, entretanto vejamos as seguintes notas explicativas dos tradutores:
Sabemos que as águas do Jordão, no seu leito estreito e profundo, vão minando as margens, provocando de vez em quando grandes desabamentos de terras que podem obstruir por completo, a torrente. A partir desse lugar, o leito permanece seco até que as águas rompem uma passagem e encontram de nosso o seu caminho. A história conta-nos que isso aconteceu em 1267, 1914 e 1927. Em nada diminuiria a ação de Deus se se tivesse servido miraculosamente, nesse momento exato, destes elementos locais. (Bíblia Sagrada, Ed. Santuário, pág. 286 em relação à Js 3, 16).
Relaciona-se esse fato com o ocorrido em 1267, segundo o cronista árabe [de nome Huwairi, conforme Ed. Paulinas, pág. 222] o Jordão cessou de correr durante dez horas, porque desmoronamentos do terreno haviam obstruído o vale, precisamente na região de Adamá-Damieh. (Bíblia de Jerusalém, pág. 317, em relação à Js 3, 16).
... O Jordão, de fato, é um pequeno rio que, em alguns lugares, permite a travessia a pé enxuto, principalmente graças à abundância de pedras em seu leito. (Bíblia Sagrada, Ed. Vozes, pág. 238, em relação à Js 4, 3).

Conclusão

De nada adianta usar as interpretações piedosas de muitas das religiões tradicionais para sustentar esses fatos, pois ao homem inquisidor dos dias atuais, alegações desse tipo não estão tendo mais vez, já que ele prefere que se busque a verdade dos fatos. Devemos, mesmo à custa de muita indignação por parte de algumas pessoas, apontar os equívocos de interpretação, as interpolações, bem como as deliberadas adulterações, para mostrar a verdade limpa e pura, que muito mais agrada que uma mentira evidenciada pelos fatos.
Devem, pois, os teólogos rever seus conceitos e, diga-se de passagem, em sua maioria são dum passado remoto que, por força dos conhecimentos atuais, tornaram-se obsoletos. “A verdade ainda que tardia”, diria Tiradentes numa situação dessa.
Finalizando, veremos a opinião de Espinosa a respeito de milagres:
O homem comum chama, portanto, milagres ou obras de Deus aos fatos insólitos da natureza e, em parte por devoção, em parte pelo desejo de contrariar os que cultivam as ciências da natureza, prefere ignorar as causas naturais das coisas e só anseia por ouvir falar do que mais ignora e que, por isso mesmo, mais admira. Isso, porque o vulgo é incapaz de adorar a Deus e atribuir tudo ao seu poder e à sua vontade, sem elidir as causas naturais ou imaginar coisas estranhas ao curso da natureza. Se alguma vez ele admira a potência de Deus, é quando imagina como que a subjugar a potência da natureza.
A travessia é apenas uma história travessa que inventaram, não acham?
Mar/2004

Referência Bibliográfica:

  • A Bíblia Anotada. Trad. PINTO, O. C. São Paulo: Mundo Cristão, 1994.
  • Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
  • Bíblia Sagrada - Edição Barsa. Rio de Janeiro: Catholic Press, 1965.
  • Bíblia Sagrada - Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 2001.
  • Bíblia Sagrada. Aparecida, SP: Santuário,1984.
  • Bíblia Sagrada. Brasília, DF: SBB, 1969.
  • Bíblia Sagrada. Petrópolis, RJ: Vozes, 1989.
  • Bíblia Sagrada. São Paulo: Ave Maria, 1989.
  • Bíblia Sagrada. São Paulo: Paulinas, 1980.
  • ESPINOSA, B. Tratado Teológico-Político. trad. AURÉLIO, D. P. São Paulo; Martins Fontes, 2003.
  • JOSEFO, F. História dos Hebreus. Trad. PEDROSO, V. Rio de Janeiro: CPAD, 1990.
  • KELLER, W. E a Bíblia tinha razão... São Paulo: Melhoramentos, 2000.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Por favor, não tirem "Salve Jorge" do ar



1. No dia 23 de Outubro de 2012 publiquei aqui no Diálogo Aberto, O Original, uma postagem relacionada à novela Salve Jorge, da Globo. O tema foi "Salve Jorge, Ogum, o Facebook, e Edir Macedo!". 

2. Escrevi aquele texto para defender a ideia de que os evangélicos, principalmente os da ala representada pelo bispo da Universal, estavam sendo muito radicais, por motivos errados, com relação à novela de Glória Perez. Muitos disseram que a novela era maligna, demoníaca, macumbada, idólatra, profana, apenas por causa do nome e sua suposta ligação com Ogum, da religião afro-brasileira. 

3. Fui bastante incisivo em dizer que aquelas manifestações eram bobagens e apenas jogadas de marketing, aliás, destaquei o fato de que a rede Record de Televisão não era lá a mais moral e ética da história para argumentar qualquer coisa sobre o assunto. Salientei, naquela ocasião, o reality show "A Fazenda", ressaltando o fato de que o Macedo, se quisesse manter a "pureza" da televisão, poderia muito bem censurar algumas coisas que acontecem em seu programa. 

4. Pois bem, eu quase não tinha ideia sobre como se desenrolaria a trama de Glória Perez. Quais seriam os problemas principais tratados ao longo dos capítulos. Se realmente haveria apologia à religiões afro-brasileiras, ou ao catolicismo, e outros. Isso, realmente, não me interessava. Cientificando a todos os meus leitores que não me interesso em contrariar a liberdade de expressão da mídia brasileira, e nem mesmo da religião, seja ela qual for. 

5. Mas agora que se passaram mais de 100 capítulos da referida novela, escrevo novamente defendendo sua "utilidade" e a incoerência das ideias de seus opositores. 

6. Não a assisto, isso é fato. Mas sei que o assunto principal da trama está relacionado ao tão atual, polêmico, importante, problema mundial do tráfico de pessoas. Mais especificamente o infantil, no caso de adoções em países estrangeiros, e o de jovens e adolescentes à prostituição. 

7. Penso que esse assunto seja um dos mais atuais e importantes, em se tratando de discussões ético-políticas em nosso país. O caso da pedofilia, por que não, também estaria coligado à temática?

8. É sabido que o tráfico de pessoas está em voga no Brasil. A Polícia Federal, junto de outras autoridades constituídas, tem se empenhado bastante na solubilidade de situações como as que a novela destaca. Mapeando rotas de tráficos com o estrangeiro, principalmente das regiões menos favorecidas de nosso país, Norte e Nordeste. Existem CPI's apurando casos espalhados por todo território Nacional. As investigações, com a ajuda das denuncias da população, têm sido bastante eficientes.

9. O Fantástico, em 31 de maio de 2009, fez um documentário extraordinário, mostrando a realidade de tráfico de adolescentes para exploração sexual no Norte do país, fomentando e conscientizando a sociedade contra esse tipo de crime, até então, pouco conhecido da realidade de todos. 

10. A novela "Salve Jorge" tem sido um meio de popularização da triste realidade desse tipo de crime que ocorre com frequência em nosso país. Graças a ela, milhares de brasileiros estamos mais cientes de todo esse esquema marginal que assola às famílias todos os dias. Essa conscientização tem gerado coisas positivas, como: conhecimento de sua realidade, cuidado das famílias com propostas semelhantes, reforçamento das leis de proteção às crianças e adolescentes, conscientização de todas as esferas políticas de nosso país em prol da redução dessas delinquências, etc.

11. É por isso que destaquei nessa postagem o seguinte tema: "Por favor, não tirem Salve Jorge do ar". 

12. É disso que o Brasil precisa. Conscientização, seja por meio de qualquer veículo de comunicação, até mesmo os de entretenimento, como novela. 

13. A oposição, com certeza, não tem o que falar mais. Todas as besteiras já foram faladas na estreia, com muitos líderes "passando vergonha" em rede Nacional, defendendo a ideia de que os cristão não poderiam vê-la. Que diga o Malafaia. 

14. Concluindo, acredito que o juízo precipitado das coisas é devastadoramente incapaz de dizer alguma coisa coerente sobre elas. A novela foi apedrejada, mas acho que os cristãos deveriam estar no mesmo barco de suas ideias, já que, agora, as conhecem. 

15. Parabéns, Glória Perez, por questionar a mazelas de nossa realidade ao fazer uso da arte. 

André Francisco

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

O sol e a lua criados no quarto dia



1. Tudo bem. Tratar os textos da Bíblia Hebraica como religiosos, passa. Mas tratá-los como conteúdo científico, e acreditar que os seus autores tinham noção da realidade física do mundo, mas usaram conscientemente uma linguagem fictícia apenas porque não era o propósito inicial da escrita, é pura desonestidade.

2. Eles não sabiam de nada sobre ciência, física, geografia, história, nada, absolutamente, quando comparado ao conhecimento atual. Eles, sim, acreditavam em mitos, acreditavam mesmo. Por exemplo, no caso de uma história da Bíblia Hebraica sobre um monstro que mora no mar e que tem várias cabeças e que devora os navegantes pela noite, não se trata de uma utilização consciente do autor de mitos que o circulavam, não. Trata-se de uma crença naquele mito, de fato, por isso que ele o usou.

3. Quando outro autor escreveu que o sol parou, não quer dizer que ele não se propôs a ser científico e que por isso não disse corretamente que a terra é que estava parada sempre. Não! Ele realmente acreditava que estava escrevendo da maneira certa, ou seja, o sol havia parado, não a terra. 

4. Quando mais um disse que a serpente do Éden falara e enganara o primeiro casal, espantem-se, ele acreditava realmente que animais no jardim inicial falavam. Nunca, digo, nunca se passou nenhuma outra ideia na cabeça desse autor, em se tratando de veracidade da narração. O sentido da história obviamente que era político-religioso, ou seja, tinha um significado maquiavélico e controlador por trás. Mas a ideia textual em si, o mito utilizado, era crendice, era creditado, seguido. 

5. Satã só entrou naquela serpente muito tempo depois da sua escrita original. Foi transmutado o significado, dado, outorgado ao adversário, muito depois. Até então, era o animal que falava, apenas!

6. Ou seja, o coitado do escritor da primeira narração da criação (Gênesis 1) realmente acreditava que o sol e a lua, governadores como ele os chama, influenciado pela astrologia babilônica, foram criados no quarto dia. Mesmo sendo eles os agentes lógicos do que chamamos de dia e noite, tarde e manhã. Mas ele não se ateve a isso, apenas escreveu. Não se sentia constrangido em terminar os dias da criação com a expressão "tarde e manhã", não mesmo. Seus "leitores" (?), camponeses pobres que mal sabiam falar, obviamente que iriam acreditar na história. Não havia questionamento científico, lógico, real na época. Apenas crença. E é o que deveria existir atualmente na mente de metade dos cabeças chatas que leem a Bíblia, apenas a crença, a fé. Nunca nada científico. Não se sustenta. 

7. Se é pra se acreditar, tem de se acreditar pelo argumento da fé. Malditos os liberais que a validaram pela experiência. Fizeram a bagunça da validação da fé-experiência se tornar mais adjungida à espiritualidade moderna. Mas, fazer o quê, não é?

8. Agora, tratar honestamente o texto, é lê-lo com seus pontos nos is. Sem tirar nem pôr, seja por tradição, dogma, falcatrua e outros meios. 

André Francisco

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Estatísticas esquisitas entre Carnaval e Marcha para Jesus



1. Mais uma comparação ridícula que tenho de aguentar no meu mural. Não sei se as pessoas que fazem esse tipo de estatística acreditam, de fato, que todo mundo que lê-la engolirá, calado, sem questioná-la. Às vezes penso que essas postagens existem de propósito, a fim de fazer quem é bobo festejar sua vitória sem razão, justificando o caso com a utilização de versículos da Bíblia.

2. Analisemos a mais recente, a que compara o número de situações adversas acontecidas nos aproximadamente 7 dias de Carnaval (destacando que em alguns lugares o Carnaval dura 10 dias, e outros 5), com as situações adversas não acontecidas em 12 horas de Marcha para Jesus em São Paulo, a qual começa às 10 horas da manhã e se estende até às 22 horas. 

3. É indiscutível o fato de que o Carnaval é o maior feriado prolongado do Brasil, isso em se tratando de dias, como também da movimentação de pessoas. Normalmente, em cidades pequenas, é possível participar de festas com duração de sexta-feira à noite até terça-feira anterior à manhã de cinzas. Ou seja, 5 dias de pura agitação e movimentação de foliões por todo território Nacional. Obviamente que vale destacar que em lugares de maior tradição carnavalesca, o período de festividades pode se estender até 10 dias, como no caso de Salvador- BA. 

4. Ou seja, a primeira questão que destaco, em se tratando da comparação feita na imagem acima, é relacionada ao tempo de duração dos dois eventos. Como já dito, o Carnaval é aproximadamente 20 vezes maior (em tempo de duração) do que a Marcha para Jesus, de 12 horas. Isso se formos multiplicar a fim de obtermos 10 dias. Qualquer pessoa que conheça um pouco de estatística sabe que uma festa que tem seu tempo de duração de 10 dias é mais susceptível a problemas do que outra que dure metade de um, logicamente. 

5. Outro fato indiscutível está relacionado com a quantidade de pessoas participantes das duas festas em destaque. A prefeitura do Rio de Janeiro, com ajuda da polícia militar e entidades especializadas em realização de pesquisas de estatística, anunciou que apenas a Zona Sul da cidade recebeu aproximadamente 6 milhões de pessoas, distribuídas em quase 500 blocos diferentes. Ou seja, uma movimentação de 6 milhões de pessoas por dia nessa região. O prefeito Eduardo Paes alertou que em 2014 haverá a retirada de alguns blocos da rua, a fim de diminuir a quantidade de pessoas em torno deles. 

6. Em Salvador, os organizadores oficiais do evento, com a ajuda da prefeitura e da Polícia Militar, estimaram cerca de 2,5 milhões de foliões por dia. Considerando 10 dias de festa, tem-se 25 milhões de pessoas. Isso em se tratando apenas dos que participaram nas ruas e nos blocos espalhados por toda a cidade. Em Recife, o famoso Bloco do Galo da Madrugada recebeu 2,5 milhões de festeiros, batendo recorde de público nesse ano. 

7. Não vou salientar aqui as milhares de cidades que comemoraram, com grande público o Carnaval, que estão espalhadas por todo território Nacional, sejam grandes ou pequenas. 

8. Da Marcha para Jesus de 2012, o Datafolha anunciou que o evento recebeu um público de 335 mil pessoas. Os mais otimistas, que fazem parte da organização, questionaram, estimando no mínimo 1 milhão de participantes. Seja a informação do Datafolha, que é especializado em contagens de públicos, ou dos organizadores, a quantidade de gente não ultrapassa sequer 3 horas de movimentação, em um único dia, do Carnaval das grandes capitais. Ou seja, a diferença entre um evento e outro em questão de público é absurdamente grande para se comparar. 

9. Outra coisa, o Carnaval é um feriado prolongado, que até mesmo pessoas que não participam de suas comemorações diretamente, possivelmente, viajam para visitar parentes, vão para outros lugares por lazer, etc. O fluxo é enorme, as rodovias horrorosamente cheias, cidades entupidas de visitantes. A susceptibilidade de acidentes e tragédias é muito maior do que em uma festa a qual acontece em uma única cidade e que dura 12 horas. E que, em raríssimas exceções, realiza-se em outras cidades menores.  

10. Concluindo, a partir de estatísticas, a foto acima não tem lógica nenhuma. Repito, naturalmente, nos Carnavais subsequentes, o índice de situações adversas continuará sendo maior que outros eventos, caso não para se louvar, mas para se procurar exaurir. 

André Francisco

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

O inferno (seol) é para todos



1. Tudo bem! O inferno, da maneira como tem sido ensinado há milênios, é um lugar terrível.

2. Mas, digo: não tão terrível assim...

3. Primeiro, porque a ideia de inferno (termo do latim infernum) não é homogênea entre as culturas religiosas. Destacando aqui a Bíblia em geral, pois é sabido que nela estão contidas duas culturas religiosas principais, a veterotestamentário, que é judaica, e a neotestamentária, que é mais ou menos judaica-persa-helena (?). 

4. Pensando na judaica, não se vê uma ideia clara do inferno (sheol). Muito menos relacionada ao sentido cristão atual. Seol é apenas o lugar dos mortos, sepultura, onde os finados iam se encontrar com seus parentes jazidos. É por isso que ao se ler a Bíblia Hebraica se percebe referências do tipo "ir ao encontro de meus antepassados", "de meus pais", pelos que estavam à beira da morte. No máximo da ideia punitiva e retributiva judaica para esse lugar, nota-se um aspecto de melhoração,de purificação, do indivíduo que vai para lá, mas nunca em grandes proporções, como confirmam rabinos da Conversão Judaica. 

5. Ou seja, a Bíblia Hebraica não tem profundidade no tratamento do tema, visto que os seus redatores não tinha sequer noção e interesse nesse pós-morte, apenas definiam-no como um lugar para descansar e repousar com os parentes. Alguns pensavam que esse lugar, seol, estava localizado no centro da terra, outros em um plano abaixo dela. Nada foi pensado propriamente dito sobre o assunto, até que surgiu a mistura cultural.

6. Quando houve a tradução da Bíblia Hebraica para sua versão grega, a "Dos Setenta", a palavra seol foi traduzida por Hades. Hades (do grego Αιδη, que significa “invisível”), segundo a mitologia grega, é o deus do mundo dos mortos e das riquezas dos mortos, deus do submundo. 

7. A bagunça ficou ainda maior a partir da tradução de uma palavra hebraica geena, que significa "Vale de Hinon", um lixão de Israel. A ideia de um lugar de fogo surgiu do submundo de Hades e do lixão de Jerusalém. Outra palavra também traduzida para o português simplesmente por inferno é Tártaro. Na mitologia grega, esse é o lugar onde foram aprisionados os Titãs, deuses gregos que perderam a batalha do Olimpo para Zeus e seus compadres. Há um pouco dessa mitologia espalhada pelo Novo Testamento, porém, com a utilização dos seres mitológicos judaicos, os malac'h, anjos, principalmente os da suposta queda de Gn 6 (?) (mito derivado do livro de Enoque). 

"Porque, se Deus não perdoou aos anjos que pecaram, mas, havendo-os lançado no inferno (tártaro), os entregou às cadeias da escuridão, ficando reservados para o juízo" 2 Pe 2.4

8. Continua...


André Francisco

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

As mentiras de Silas Malafaia


Por David G. Borges

Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES - 2010). Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES - 2012). Bacharel e Licenciado em Ciências Biológicas pelas Faculdades Integradas São Pedro, Campus II (FAESA - 2005). Professor de Lógica.


  1. Twitter do autor: https://twitter.com/NotInAGoodMood
  2. Este texto foi publicado no site do ENFU!: http://www.enfu.com.br/mentiras-de-silas-malafaia/
  3. Entrevista de Silas Malafaia no programa "De Frente Com Gabi": http://www.youtube.com/watch?v=Myb0yUHdi14
  4. Vídeo-resposta de Eli Vieira, geneticista: http://www.enfu.com.br/geneticista-desmente-o-que-silas-malafaia-disse-a-marilia-gabriela/
  5. Texto de Silas Malafaia no qual ele responde ao vídeo do biólogo Eli Vieira: http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/pastor-silas-malafaia-responde-ao-biologo-eli-vieira

A réplica de Silas Malafaia ao biólogo Eli Vieira, mestre em genética e doutorando na Universidade de Cambridge (que fez um vídeo desmentindo cientificamente o que o pastor disse a Marília Gabriela) está cheia de falácias.

Pra ficar bem claro: dentro do campo de estudo da lógica, “falácia” é um termo técnico usado para descrever uma frase que seja emocionalmente apelativa ou convincente, mas que não possui nenhum conteúdo argumentativo real. Ou seja, não é um argumento - mas convence quem ler/ouvir sem analisar com cuidado. Vou mostrar cada uma delas, dando inclusive o nome técnico de cada uma dentro da lógica (quem quiser pode pesquisar no Google e entender melhor o que estou dizendo).

- “Minha resposta ao doutorando em Genética, que me parece estar defendendo a sua causa na questão da homossexualidade”

Ele já começou o texto agredindo o rapaz. Sabemos que boa parte do público do Malafaia é homofóbico, então jogar suspeita sobre a orientação sexual de alguém é forma de desqualificar o outro debatedor sem nem precisar abordar os argumentos dele. O nome técnico dessa falácia é “argumentum ad hominem” (“argumento ao homem” ou “ataque ao homem”). O que o Silas fez foi isso: “se você discordou de mim e defendeu os gays, você é uma bicha!”. Se trocarmos a palavra “bicha” na última frase por qualquer outra ofensa (“feio”, por exemplo), é fácil ver como esse artifício usado pelo Silas é infantil e não contém argumento nenhum.

- “Toda a argumentação que ele apresenta é apenas suposição científica, sem prova real, e tremendamente questionada pela própria Genética”.

Isso se chama “non causae ut causae” (“tratar como prova o que não é prova”, ou “falácia da falsa proclamação de vitória”). Ele diz que ganhou a discussão, só que não o fez. Se o que o rapaz disse está errado, cabe ao Silas mostrar POR QUÊ (isso se chama “ônus da prova”). Só que o Silas não fez isso, ele se limita a dizer que ele está certo e o Eli (o autor do vídeo), errado. Mas não diz como.

- “É igual à Teoria da Evolução, uma argumentação científica que não pode ser provada”.

Isso aqui não é nem uma falácia, é uma mentira mesmo. Agora eu não estou falando como professor de lógica, mas como biólogo. O cara não sabe nem o que é uma teoria, confunde isso com hipótese. A explicação seria muito longa para colocar aqui, mas quem pesquisar “diferença entre teoria e hipótese” no Google e olhar uns 4 ou 5 resultados da busca vai entender do que estou falando.

- “Não existe ordem cromossômica homossexual, só de macho e fêmea”.

O que raios é “ordem cromossômica”? Esse termo não existe em nenhum livro de biologia que eu conheça.

- “Então, pseudodoutor, não existe uma prova científica de que alguém nasce homossexual, apenas conjecturas”.

Aqui ele repete o ad hominem e a falsa proclamação de vitória. De novo ofendeu o autor do vídeo sem dar nenhum argumento, e de novo se declarou como vitorioso do debate sem dar nenhum argumento. O cara não pode ser "pseudodoutor" se nunca se apresentou como doutor (ele foi bem claro em dizer que era estudante de doutorado, não doutor).

- “Dados de pesquisas americanas: 86% dos homens homossexuais já se apaixonaram ou tiveram relação com mulheres; 66% das mulheres homossexuais já se apaixonaram ou tiveram relações com homens. Como alguém nasce homossexual se já teve relação heterossexual? Isso é uma piada!”

Aqui o Silas foi bem mais sofisticado na falácia que usou. Isso se chama “Cum hoc ergo propter hoc” (“com isso, portanto, devido a isso”). Ele cita um dado qualquer (que não diz de onde saiu, e por isso não é confiável) e cita outro fenômeno em seguida. Depois tenta estabelecer uma relação de causa e efeito entre as duas coisas. O raciocínio que o Malafaia quer que o leitor faça é de que se um homossexual já experimentou, alguma vez na vida dele, uma relação heterossexual, ele não é um "homossexual genuíno". Mas aí ele finge que não existe um fato bastante conhecido: existe uma pressão social imensa para que as pessoas sejam heterossexuais. Muitos homossexuais ficam "escondidos no armário" (é esse o termo?) boa parte de suas vidas, e experimentam relações heterossexuais nesse período para atenderem ao que a sociedade espera deles em comportamento externo. Isso não faz deles "menos" homossexuais, que é o que o Malafaia quer que o leitor desse texto pense.

- “46% dos homens homossexuais já sofreram abuso por homens. A pesquisa é mais estarrecedora ao mostrar que 68% dos homens homossexuais só se identificaram com o homossexualismo após o abuso”.

Novamente, ele não cita fonte da pesquisa dele. Se não citou de onde saiu o dado, o dado pode muito bem ser inventado (porque o leitor não tem como conferir).

- “Se o rapaz metido a doutor em Genética quiser saber mais”

Novamente, um “ad hominem”. Ele ofende o geneticista do vídeo gratuitamente o tempo todo. Isso tem um propósito (existe um padrão no tipo de ofensa), mas irei deixar para explicar mais à frente.

“leia o livro ‘Nascido gay?’, do Dr. John S. H. Tay, que tem mestrado em Pediatria e dois doutorados: um em Genética e outro em Filosofia, e analisou 20 anos de pesquisas sobre o assunto”.

Isso se chama “argumentum ad verecundiam” (“argumento da autoridade”). Basicamente funciona assim: “fulano é importante, logo, fulano está certo”. Ele cita os títulos acadêmicos do autor como se isso encerrasse a questão, mas os títulos em si não querem dizer nada - eles servem, no máximo, de baliza quanto a qual área do conhecimento as opiniões do sujeito são relevantes. Eu sou formado e tenho mestrado em filosofia, e posso garantir que doutorado em filosofia por si só não dá a qualquer pessoa base NENHUMA para discutir biologia ou a questão da homossexualidade. Quanto ao cara ser doutor em genética, isso é um pouco melhor - mas ainda assim pode não ser relevante para a questão, dependendo do caso. Por exemplo: eu também sou formado em biologia, e minha área de atuação sempre foi zoologia. Se você me perguntar sobre uma planta, eu saberei dizer mais coisas que um leigo. Mas também posso cometer erros grosseiros falando sobre o assunto, porque não o conheço tão bem quanto um botânico. Ser doutor em genética é mais relevante para essa questão do que ser doutor em, digamos, artes plásticas - mas ainda pode não ser relevante o suficiente dependendo da área da genética na qual a pesquisa do sujeito se concentrou.

Essa é a falácia mais usada, em qualquer lugar. É um truque sujo, fácil e rápido para ter razão em uma discussão sem fazer esforço. Eu mesmo a uso quando quero encerrar uma discussão sem ter trabalho. Usamos com nossos filhos – “não me questione, sou seu pai!”.

- “Mais uma para o pseudodoutor”

Lembram que eu disse que o Silas estava insistindo muito em ofender o rapaz do vídeo? Notem como ele sempre tenta diminuir ou fazer pouco da formação do sujeito. Isso tem um propósito. O fato de eles estarem falando de genética e do rapaz ser doutorando exatamente nessa área pesa muito contra o Silas. Ele repete sucessivas vezes ofensas como “pseudodoutor” porque sabe que uma frase repetida muitas vezes, mesmo se for falsa, acaba sendo aceita por quem a lê/ouve. Assim Silas consegue colocar em dúvida a credibilidade do geneticista, “igualando” (para o público que cai no truque) a importância da formação acadêmica dos dois. Só que entre a formação acadêmica dos dois há um abismo: o Malafaia é pastor, o outro é geneticista. Quando se discute genética, a palavra do geneticista tem mais peso. Isso se chama “argumentum ad nauseam” (“argumentar até causar náusea”, ou seja, repetir a mesma coisa sem parar).

- “sobre os gêmeos monozigóticos, que são idênticos geneticamente: 35% desse tipo de gêmeo que é homossexual, o seu irmão gêmeo é heterossexual. Logo, conclui-se que geneticamente não se nasce homossexual, e o fator externo, do ambiente, é fundamental para determinar isso. Preferência aprendida ou imposta. Ou todos teriam de ser homossexuais ou todos teriam de ser heterossexuais no caso de gêmeos monozigóticos”.

Esse foi o ponto alto do texto do Malafaia, a falácia mais sofisticada que ele usou. É uma combinação de “falsa dicotomia” com “non sequitur” (“não segue”, ou “conclusão irrelevante”). O que ele faz: apresenta um dado (novamente, sem dizer de onde tirou - o que o torna duvidoso) e força o raciocínio do leitor para que esse dado só possa ser explicado de duas formas (falsa dicotomia). Depois ele vai conduzindo o leitor através de outras falsas dicotomias até chegar a uma conclusão que não tem relação nenhuma com o dado apresentado inicialmente (“non sequitur”).

Um exemplo que usei na apostila que escrevi para dar aulas aos meus alunos:

Ex: “José está atrasado para o trabalho. Ou seu carro quebrou, ou dormiu demais. Ligamos para ele e não estava em casa, então seu carro deve ter quebrado”.

Este dilema é falso, pois muitas outras coisas podem ter acontecido com José para que ele se atrasasse. O número de opções na premissa foi “forçado” a fim de justificar a conclusão. O Malafaia faz parecido: ele tenta forçar o leitor à conclusão de que todos os gêmeos deveriam ser heterossexuais ou homossexuais, sem exceção. Só que em biologia NADA (nada mesmo) funciona assim. E essa conclusão dele simplesmente não tem relação lógica alguma com o dado que ele mesmo apresentou inicialmente.

- “[Algumas fontes de pesquisas do livro citado: TOMEO, M. E.; TEMPER, D. I.; ANDERSON, S. Kotler D. Archives of Sexual Behavior [Registros sobre comportamento sexual], outubro de 2011; 30(5):535-41 ; STODDAR, J. P.; DIBBLE, S. L.; FINEMAN, N. “Sexual and physical abuse: a comparison between lesbians and their heterosexual sisters”, in: Journal Of Homosexuality, 56(4):407-20, 2009.]”

Isso aqui foi bem interessante: Malafaia citou fontes e bibliografia. Isso dá a ele ar de credibilidade, mas tem algo a ser notado aqui: ele não diz qual dessas fontes trata de cada argumento dele. Ele deveria fazer assim: “Sobre os 35% de gêmeos, leia o livro X; sobre os 86% de gays que tiveram relações hetero, leia o artigo Y; etc., etc.”. Ao invés de fazer isso, ele apresenta todas as referências bagunçadas. Isso a caracteriza como uma falácia visual: ele não está DIZENDO nada falso e tentando fazer com que pareça verdadeiro, mas VISUALMENTE está fingindo apresentar fontes que embasam as coisas que afirmou, quando na verdade não está fazendo isso (ou o está fazendo de forma superficial). É preciso destacar que esse é um tipo bem raro de falácia. Silas Malafaia teve algum tipo de treinamento nisso. Outro ponto importante: o rapaz do vídeo colocou, lá no You Tube, todas as fontes para cada frase que ele afirmou (separadas por assunto). E elas são bem mais numerosas que as fontes que o Silas cita aqui. Isso não pode ser usado como critério principal para determinar quem tem mais credibilidade, mas serve de critério auxiliar. Quem cita mais fontes, fontes de melhor qualidade e fontes com mais rigor acadêmico tende a ter “mais razão” do que o outro debatedor. E, até agora, quem ganhou nisso foi o geneticista do vídeo.

- “A verdade é esta: ninguém nasce gay. Não existe prova científica, apenas teorias científicas”.

Essa aqui é muito boa: se chama “argumento do espantalho” (“straw man” - essa tem nome em inglês, não em latim). O Malafaia cria uma “versão” do argumento do outro debatedor (cria um “espantalho”), destrói esse argumento que ele mesmo inventou (destrói o “espantalho”) e diz que, com isso, venceu o debate. Mas na verdade ele não refutou o que o Eli (o geneticista do vídeo) disse, ele refutou a “versão Silas Malafaia” do que o Eli disse. Em nenhum ponto o rapaz do vídeo diz que pessoas “nascem gays”, ele diz que há uma influência genética. Só isso. Inclusive, ele é bem categórico em afirmar que essa INFLUÊNCIA genética não deveria ser entendida como DETERMINAÇÃO genética, e que isso era uma visão ultrapassada de como se via um gene (no início do séc. XX se pensava assim).

O Silas também repete a bobagem sobre teorias mais uma vez. O termo “teoria”, no meio científico, não é usado da mesma forma que no meio do povão. Uma teoria se refere a conhecimentos já comprovados sucessivas vezes. Silas Malafaia confunde isso com “hipótese”, que é o termo que usamos para uma especulação.

Para a esmagadora maioria da população, mesmo pessoas instruídas, todos esses artifícios do pastor passariam despercebidos e pareceriam extremamente convincentes e racionais.




por David G. Borges, Quinta, 7 de fevereiro de 2013 às 20:02 ·

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Hoje comemora-se o nascimento de um rei



1. Há 68 anos nascia Robert Nesta Marley, em Nile Mile, Jamaica, conhecido mundialmente como Bob Marley. Cantor, compositor, revolucionário ideológico, deixou sua marca na história musical, política e religiosa da humanidade. 

2. Defensor direto dos pobres, amor coletivo, paz  mundial e da liberdade, lutou através de suas letras pela liberdade dos povos oprimidos, desfavorecidos socialmente, e pela divulgação da sua religião, em nome de Rasta, o grande. 

3. Amado e odiado por muitos, Bob Marley continua hodiernamente trabalhando, sendo um dos artistas com maiores índices de vendas todos os anos, ainda que não mais em vida. Amante declarado de ganja, erva que considerava sagrada, lutou sem machucar, batia apenas com a música, e dizia: "hit me with music!" para os seus agressores. 

4. Eternamente conhecido como o "Rei do reggae", ritmo musical que passou a ser conhecido e reconhecido depois de suas atuações. 

5. Vai aí uma pequena homenagem do Diálogo Aberto a esse ícone da música. 



One love



Is this love




Redemption Song



Diálogo Aberto, O Original

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

A pequena estória de uma escritora e sua vocação.


Sara era uma menina que desde cedo aprendeu a ser bastante observadora. Crescera com aquilo. Nenhum detalhe lhe passava despercebido. Desde criança seus pais discutiam entre si, pois viam aquela bela menina, de cabelos louros, olhos verdes e bastante energia, parada, observando aquilo que eles achavam que fosse observado, os movimentos, as reações, as risadas, os gritos, os choros; enquanto seus colegas se dispunham a brincar, jogar bola, pular amarelinha, brigarem; olhava suas amiguinhas e as casas de bonecas, decoradas com suas barbies do ano, como se não tivesse nenhum desejo de ir lá e desfrutar daquele paraíso infantil, pelo menos aos olhos de todos. Tudo isso a chamava a atenção de certa forma, que só conseguia brincar quando não havia ninguém por perto, daí era uma festa, uma bagunça, brinquedos jogados para lá e para cá; uma boneca na cozinha, uma bola na sala, jogos da estrela em seu quarto, presilhas e cachecóis na escada, um grande carnaval inocente.

Certo dia, quando Sara acabara de completar seus 10 anos de idade, veio ao seu pai e lhe pediu um caderno que vira outro dia em uma papelaria no centro da cidade, enquanto caminhava com sua mãe para ir às compras num supermercado central. Então em uma quinta-feira após o trabalho, seu pai, que era dono de uma revendedora de carros usados, lhe trouxe aquele caderno de capa rosa, com flores de decoração em auto relevo, em um papel de embrulho que ela nunca se desfez, mesmo após se casar e sair de casa. No embrulho, havia um bilhete anexado que dizia “como amor, do papai”. Depois desse dia, todos os dias, antes de dormir, Sara se ajoelhava, fazia sua oração noturna que sua avó havia lhe ensinado para expulsar os bichos da noite e os fantasmas que achava que um dia iriam lhe puxar os pés, que ficavam descobertos, devido ao calor que sentia. Depois de sua oração, Sara pegava seu caderno rosa florido na primeira gaveta do criado mudo, ligava sua abajur com enfeites de dançarinas de balé e se punha a escrever sua odisséia diária, todas as suas observações e suas experiências daquele dia, narrando os fatos em primeira pessoa. Ao terminar, guardava-o novamente e dormia feito um anjo que era. Aquilo tudo era um ritual, seu momento sagrado de todos os dias.

Em uma noite chuvosa, logo após do jantar em família, habitualmente preparado pela sua mãe, que sempre variava os cardápios e adorava inovar seu leque de receitas; houve uma terrível discussão entre seus pais. A pobre sara não sabia direito o que se passava e com toda a sua inocência, pegara seu caderno para mostrar ao seu pai, o “fantástico” retrato que havia feito de Dolly, a pequena pinche, que ficava presa no quarto dos fundos. O pai, como num lance de fúria, após um dia de trabalho do cão e uma discussão com a esposa daquelas que viram fuxico na boca dos vizinhos durante uma semana, pegou o caderno e virou, esbofeteando seu delicado rosto. Sara, indefesa e frágil, caiu sentada, perto da mesa, chorando aos prantos; sua mãe veio ao seu encontro, seu rosto estava vermelho, o caderno caído e aberto em um de seus textos em sua frente e seu pai, não acreditando no que havia feito, pegou as chaves do carro penduradas na parede da sala e fugiu, agonizando.

Na semana seguinte seus pais se divorciaram. Vários anos depois, Sara soube que na tarde daquele dia, sua mãe havia descoberto uma traição de seu pai com uma de suas melhores amigas, e que discutiam a respeito disso, e pelo fato da agressão sua mãe decidira de uma vez por todas romper com o casamento. Contudo, naquela noite, Sara fora para o seu quarto e com grande remorso, escondeu seu caderno em uma das prateleiras de seu guarda roupa e ali deixou esquecido durante anos, como um símbolo de um coração partido e de uma experiência que não desejaria ser lembrada. Apagou a luz e dormiu, sem ao menos fazer sua oração protetora.

Algumas primaveras se passaram e agora, Sara já havia completado seu décimo sexto ano de idade e estava prestes a deixar a escola rumo á faculdade. Tornara-se uma menina bela, desejada por muitos rapazes e bastante inteligente, contudo com a cabeça nas nuvens, bastante aérea, como se o mundo não fizesse muito sentido. Era uma moça de muitas crises. Nas amizades, em relação á sexo, religião e principalmente qual rumo deveria tomar em seu futuro. Apesar de ser uma jóia rara para o seu meio, não havia tido bons conselheiros, exceto sua mãe, que se esforçava arduamente para lhe transmitir ensinamentos úteis, por isso, apesar de toda sua capacidade, não via perspectivas futuras brilhantes. O que conseguia enxergar eram apenas caminhos relacionados ao seu contexto familiar. Seu pai, longe de casa há anos, constitui outra família e agora pouco se importava com aquela bela moça de olhos verdes, exceto para lhe enviar sua pequena pensão mensal.

Meses após a conclusão do ensino médio, Sara observava seus colegas em suas faculdades federais e particulares, cursando cursos preparatórios e prestando concursos que para ela não tinham excitação nenhuma. Não encarava a possibilidade de se fazer um curso superior apenas por uma carreira bem remunerada. Apesar de ser filha de um vendedor de carros usados, tinha a idéia de vocação bem gravada dentro de si; talvez pelas histórias que sua mãe lhe contava quando pequena, de que sempre pedira á Deus, uma menina que fosse uma grande mulher de sucesso em sua geração, tipo uma revolucionária, e que a desenhando para o Criador, havia-a recebido da mesma forma que pedira.  Em um dia, estava particularmente muito triste e chorava bastante, pois havia terminado de desfazer um namoro de sete meses com uma paixão antiga e verdadeira, dos tempos do inicio da puberdade. Começou então, a vasculhar seu antigo guarda roupa, para procurar as cartas que escrevera a respeito do tal rapaz e rasgar, como se fosse um esporte olímpico pós namoro, talvez um calmante psicológico dos bons. Surpreendeu-se então, quando encontrou aquele velho caderno rosa, com flores em auto-relevo, recolocado dentro do papel de embrulho, com o bilhete de seu pai ao canto. Milhares de sensações e lembranças vieram á tona, algumas boas, outras nem tanto. Lembrara da época que era feliz, quando todos os dias orava e dormia tranquilamente um inocente sono, onde os sonhos faziam parte de sua realidade e o mundo parecia ser pacífico e belo, como em um conto de anjos e fadas, seus personagens favoritos da infância.

Sara sentiu que as suas boas lembranças suplantaram as más, até mesmo no dia da terrível briga e sorriu. Leu e releu os seus textos e descobriu perplexamente, que suas narrativas eram ricas em detalhes e que pareciam ter vida própria, queimando o seu peito de emoções e invadindo sua imaginação, levando-a até os locais descritos e os momentos narrados, mesmo após alguns anos. Percebeu ali que havia perdido grande parte de sua pequena história. Que as fatalidades da vida, haviam lhe roubado sua imaginação e sua vontade de viver intensamente. Havia encontrado o mundo dos adultos e nele, não havia espaço para voar, apenas andar com suas mãos atadas pela sordidez do caos, do egoísmo e da miséria espiritual. Sua mente havia sido cauterizada. Entendeu que tudo o que precisava estava ali, seu dom, seu talento, sua proeza, sua força, seu futuro, sua capacidade de observar a vida. Via se destinada á construir um mundo de graça abundante, de esperanças possíveis, de sonhos realizáveis e amores concretizados, um mundo em que a personagem principal teria ao menos um momento de felicidade pura, como em sua infância. Tornara-se uma escritora, sempre o fora. Possuía tudo o que se requeria de uma grande escritora. Observação crítica e nata, altamente perspicaz; Habilidade com as palavras; Inteligência lógica; Excelente imaginação e sexto sentido e uma história de vida de intensa dor e alegria, com experiências dignas de um pódio colossal. Ela estava pronta, esse era seu destino, transformar sua dor em prazer e sua alegria em contentamento. Sentia-se viva. Essa era sua vocação.

Sara formou-se em pedagogia e escreveu milhares de contos infantis e também para adultos. Casou-se com 21 anos de idade. Teve três filhos e morreu aos 35, devido á uma parada cardíaca numa manhã ensolarada de domingo enquanto escrevia seu quinto livro, um romance sobre a dura realidade das crianças pobres nos guetos de países subdesenvolvidos. Ganhou vários prêmios. Era conhecida Internacionalmente. Uma escritora de sucesso que ajudou muitas meninas e meninos assim como ela, terem seus sonhos realizados e seguirem a vocação de suas vidas. Seu legado perdura por várias gerações. Uma semana antes de sua súbita morte, escreveu:
“Se me dessem o mundo todo, não trocaria por nada do que tenho hoje. A paz e a realização de se viver com um e por um propósito, são maiores do que todas as riquezas construídas pelo homem.”

Bendito livro de capa cor de rosa.




Rodrigo de Barros Mascarenhas

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

O "perdão" da dívida de Pedro





Pedro tem uma dívida com João, 100.000 reais!

Pedro é pobre e não tem condição nenhuma de pagar...


João tem um filho chamado Rafael, e quer receber seu dinheiro. 

Pedro não paga, e João cobra de seu filho no lugar de cobrar de Pedro.

Rafael "se mata" para pagar, e consegue.

João fica satisfeito e "perdoa" Pedro. 

Perdoa...?

André Francisco

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