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quarta-feira, 13 de novembro de 2019

A história de Israel no debate atual


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This article surveys some perspectives in the current research of the “History of Israel”, the challenges that this poses, and proposes some trajectories for those researching this subject. The scholarly consensus that existed up until the middle seventies of the twentieth century was shattered. The rationalistic paraphrase of the biblical text that constituted the core of the handbooks of the “History of Israel” is no longer acceptable to most scholars. An increasing number of scholars question the use of the biblical text as a source for the “History of Israel”. The implementation of modern literary criticism on the biblical text requires a moving away from issues of historicity, and this allows the “biblical” stories to be evaluated primarily from a literary perspective. The writing of a “History of Israel” using only the archaeological context and non-biblical writings is a controversial undertaking, however, an increasing number of scholars are attempting to do this.  It appears a revisionist “History of Syria/Palestine” will compete against the traditional “History of Israel” as scholars from both sides continue their research.

Até meados da década de 70 do século XX, havia um razoável consenso na História de Israel. Entre outras coisas, o consenso dizia que a Bíblia Hebraica era guia confiável para a reconstrução da história do antigo Israel. Dos Patriarcas a Esdras, tudo era histórico. Se algum dado arqueológico não combinava com o texto bíblico, arranjava-se uma interpretação diferente que o acomodasse ao testemunho dos textos, como no caso da destruição das (inexistentes) muralhas de Jericó pelo grupo de Josué[1].
Exemplos?
Os patriarcas eram personagens históricos, o que podia ser comprovado pelos textos mesopotâmicos de Nuzi, do século XIV a.C., em seus muitos paralelos, de estruturas socioeconômicas a tradições legais, com Gn 12-35. E a migração dos amoritas, que ocuparam a Mesopotâmia e a Palestina no final do terceiro milênio a.C., criava as condições ideais para a entrada dos patriarcas na região da Palestina e explicava seus nomes, sua língua e sua religião.
José era personagem historicamente possível, pois havia grande quantidade de evidências egípcias que testemunhava os costumes contados em Gn 37-50. Semitas poderiam ter chegado a altos postos de governo no Egito, incluindo o de grão-vizir, especialmente durante o governo dos invasores asiáticos hicsos.
A escravidão dos hebreus no Egito e o êxodo não podiam ser questionados, pois textos egípcios testemunham que Ramsés II utilizou hapirus (= hebreus) na construção de fortalezas no delta do Nilo em regime de trabalho forçado. A Estela de Merneptah, faraó sucessor de Ramsés II, comprova a existência de israelitas na terra de Canaã na segunda metade do século XIII a.C., o que nos permitia fixar a data do êxodo aí por volta de 1250 a.C.
A conquista da Palestina pelas 12 tribos israelitas sob o comando de Josué, como narrada no livro que leva o seu nome, contava com testemunhos arqueológicos respeitáveis, como a destruição de importantes cidades cananeias na segunda metade do século XIII a.C., embora muitos autores preferissem explicar a entrada na terra de Canaã de outro modo, como pacífica e progressiva infiltração de seminômades pastores a partir da Transjordânia.
A construção e a consolidação do poderoso império davídico-salomônico eram consideradas como pontos fixos e imutáveis na historiografia israelita, constituindo marco seguro para qualquer manual de História de Israel ou de Introdução à Bíblia quanto às datas dos acontecimentos e às realizações da sociedade israelita.
Os reinos separados de Israel e Judá, após a morte de Salomão, eram bem testemunhados pelos textos assírios e babilônicos, e até pela Estela de Mesha, rei do vizinho país de Moab, sendo tudo, por sua vez, muito bem detalhado nos livros dos Reis, parte da confiável Obra Histórica Deuteronomista.
O exílio babilônico e a volta e reconstrução de Jerusalém durante a época persa, marcando o nascimento do judaísmo baseado no Templo e na Lei que passa a ser lida sistematicamente nas sinagogas, constituíam matéria real e sem maiores problemas, graças à confiabilidade dos textos bíblicos que detalhavam os acontecimentos desta época.
O melhor livro para detalhada exposição e defesa deste consenso é o de John Bright, História de Israel. São Paulo: Paulus, 1978, traduzido da segunda edição inglesa de 1972. Bright pertence à escola americana de historiografia de W. F. Albright e esta sua ‘História de Israel’ foi o manual mais utilizado por nós nos anos 70 e 80 do século passado.
John Bright lançou uma 3a edição de sua História de Israel em 1981. Poucas mudanças foram feitas. O autor atualizou o livro quanto a algumas descobertas arqueológicas e mostrou-se mais prudente nas afirmações sobre a historicidade de certos acontecimentos e personagens bíblicos. Mas manteve, basicamente, as posições da 2a edição. Uma 4a edição do livro foi lançada, após a sua morte em 1995, com uma Introdução e um Apêndice de William P. Brown, no ano 2000, pela Westminster John Knox Press. A tradução brasileira desta 4a edição foi publicada pela Paulus no final de 2003, como a 7a edição, revista e ampliada a partir da 4a edição original. Bright foi, até a sua morte, Professor de Hebraico e de Interpretação do Antigo Testamento no Union Theological Seminary, Richmond, Virginia, USA.
É preciso lembrar, porém, que a historiografia alemã, desde W. de Wette, em 1806-7, passando por Julius Wellhausen, em 1894, até Martin Noth, em 1950, não participava integralmente deste consenso, negando, por exemplo, a historicidade dos patriarcas.
Mas, a ‘História de Israel’ está mudando. O consenso foi rompido. A paráfrase racionalista do texto bíblico que constituía a base dos manuais de ‘História de Israel’ não é mais aceita. A sequência patriarcas, José do Egito, escravidão, êxodo, conquista da terra, confederação tribal, império davídico-salomônico, divisão entre norte e sul, exílio e volta para a terra está despedaçada.
O uso dos textos bíblicos como fonte para a ‘História de Israel’ é questionado por muitos. A arqueologia ampliou suas perspectivas e falar de ‘arqueologia bíblica’ hoje é proibido: existe uma ‘arqueologia da Palestina’, ou uma ‘arqueologia da Síria/Palestina’ ou mesmo uma ‘arqueologia do Levante’.
O uso de métodos literários sofisticados para explicar os textos bíblicos, afasta-nos cada vez mais do gênero histórico, e as ‘estórias bíblicas’ são abordadas com outros olhares. A ‘tradição’ herdada dos antepassados e transmitida oralmente até à época da escrita dos textos frequentemente não consegue provar sua existência.
A construção de uma ‘História de Israel’ feita somente a partir da arqueologia e dos testemunhos escritos extrabíblicos é uma proposta cada vez mais tentadora. Uma ‘História de Israel’, que dispense o pressuposto teológico de Israel como ‘povo escolhido’ ou ‘povo de Deus’ que sempre a sustentou. Uma ‘História de Israel e dos Povos Vizinhos’, melhor, uma ‘História da Síria/Palestina’ ou uma ‘História do Levante’ parece ser o programa para os próximos anos.
E há pesquisadores de renome na área, como Rolf Rendtorff, exegeta alemão, professor da Universidade de Heidelberg, falecido em 2014, que já em 1993 afirmava em artigo na revista Biblical Interpretation 1, p. 34-53, que os problemas da interpretação do Pentateuco estão intimamente ligados aos problemas mais amplos da reconstrução da história de Israel e da história de sua religião.
Este artigo quer traçar um panorama destas mudanças pelas quais vem passando a ‘História de Israel’ nas últimas décadas, apontar as dificuldades que a crise vem criando e propor algumas pistas de leitura para os interessados no assunto.

1. Patriarcas? Que Patriarcas?
Em 1967, o norte-americano Thomas L. Thompson começou sua tese de doutorado na Universidade de Tübingen, na Alemanha. O tema: as narrativas patriarcais. Sua ideia fundamental: se algumas das narrativas sobre os patriarcas hebreus estavam se referindo historicamente ao segundo milênio a.C., como quase todos os arqueólogos e historiadores acreditavam naquela época, então Thompson poderia distinguir nelas as mais antigas histórias bíblicas da tradição posterior mais ampliada[2].
Thomas L. Thompson
Quando Thompson começou seu trabalho, ele estava tão convencido da historicidade das narrativas sobre os patriarcas no Gênesis, que aceitou, sem questionar, os paralelos feitos entre os costumes patriarcais e os contratos familiares encontrados na cidade de Nuzi, no norte da Mesopotâmia, e datados da época do Bronze Recente (ca. 1500-1200 a.C.)[3].
Um bom exemplo desse paralelismo pode ser lido no comentário de SPEISER, E. A. Genesis. Garden City, New York: Doubleday, 1964, no qual o autor discute cerca de 20 coincidências entre os costumes patriarcais e os costumes de Nuzi, como os casos da esposa-irmã Sara (Gn 12,10-20 e paralelos), a adoção de um estrangeiro, Eliezer, como herdeiro (Gn 15,2), a mãe de aluguel como Agar (Gn 16,1-6).  Estes e outros exemplos podem ser mais facilmente vistos em VOGELS, W. Abraão e sua Lenda: Gênesis 12,1-25,11. São Paulo: Loyola, 2000, p. 38-45.
Dois anos mais tarde, porém, em 1969, Thompson percebeu que os costumes familiares de Nuzi e as leis sobre propriedades não eram exclusivos nem de Nuzi, nem do segundo milênio, mas, mais provavelmente, refletiam práticas típicas do primeiro milênio a.C. Isto quebrava o paralelismo feito pelos autores entre Nuzi e o mundo patriarcal e tirava a garantia de que os costumes patriarcais refletiam práticas do segundo milênio.
Além do mais, examinando a hipótese amorita, segundo a qual teria havido grande migração de nômades vindos das fronteiras do deserto siro-arábico para a Mesopotâmia e para a Síria-Palestina no final do terceiro milênio, Thompson percebeu que não havia prova alguma para tal pressuposto, pois o que se descobriu nos últimos anos é que os amoritas são sedentários do norte da Mesopotâmia, vivendo da agricultura e da criação de gado. Isto é testemunhado pelas centenas de povoados espalhados do Eufrates até os vales dos rios Khabur e Balikh e datados pelos arqueólogos como existentes desde o Calcolítico. O crescimento populacional dos amoritas deve ter provocado a ampliação de seus territórios e a ocupação de várias cidades da região. Além do que, muitas das mudanças ocorridas em todo o Antigo Oriente Médio que antes eram atribuídas a invasões mal documentadas de povos, podem ser explicadas, hoje, mais cientificamente, pelas mudanças climáticas na região, sujeita a períodos de secas prolongadas e devastadoras.
Thompson passou, então, a defender que as narrativas patriarcais estavam refletindo muito mais o primeiro do que o segundo milênio, e a datação tradicional dos patriarcas e sua historicidade caíram por terra.
O resultado foi academicamente desastroso. Thompson, que terminou a pesquisa em 1971, não pôde defender sua tese na Europa nem publicar seu livro nos Estados Unidos. O livro só foi publicado em 1974 e Thompson conseguiu seu PhD na Temple University, Philadelphia, Estados Unidos, em 1976[4].
John Van Seters, de quem falaremos mais detalhadamente no próximo item a propósito do Javista, pesquisando a historicidade dos patriarcas, independente de Thomas L. Thompson, chegou a conclusões semelhantes, não atribuindo qualquer valor histórico às estórias sobre Abraão.
Em 1987 Thomas L. Thompson começou a trabalhar a questão das origens de Israel, retomando a argumentação publicada em um artigo de 1978, sob o título de “O Background dos Patriarcas”, no Journal for the Study of the Old Testament, da editora Sheffield, Reino Unido. Neste artigo, Thompson localizava as origens de um Israel histórico na região montanhosa ao norte de Jerusalém durante o século IX a.C. Isto implicava a exclusão de qualquer unidade política de Israel que abrangesse toda a Palestina, ou seja, não podia ter existido uma ‘Monarquia Unida’ sob Saul, Davi e Salomão em Jerusalém, no século X a.C.
O artigo de T. L. Thompson foi relançado em livro: The Background of the Patriarchs: A Reply to William Dever and Malcolm Clark, em ROGERSON, J. W. The Pentateuch. A Sheffield Reader. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1996, p. 33-74.
O estudo completo resultou no livro Early History of the Israelite People from the Written and Archaeological Sources [Antiga História do Povo Israelita a partir de Fontes Escritas e Arqueológicas], Leiden: Brill, 1992 [2. ed.: 1994]. Diz Thompson que a reação a este livro foi pior do que à tese sobre os patriarcas, levando ao afastamento do autor da Marquette University, nos Estados Unidos, onde trabalhava.
Mas, em 1993, Thompson foi convidado para trabalhar no Departamento de Estudos Bíblicos da Universidade de Copenhague, onde até hoje se encontra, e onde encontrou um grupo com ideias avançadas sobre a ‘História de Israel’, os hoje chamados ‘minimalistas’.
Um relato dos conflitos e debates que envolveram a escrita e publicação da tese de Thompson foi feito por ele no artigo On the Problem of Critical Scholarship: A Memoire, publicado em abril de 2011 pela revista online The Bible and Interpretation.

2. Van Seters reinventa o Javista
Ainda em 1964, o canadense John Van Seters aceita o desafio de um seu professor e começa a revisão da ‘Hipótese Documentária’ do Pentateuco, examinando as tradições sobre Abraão.
A ‘Hipótese Documentária’ afirmava, desde o século XIX, que o Pentateuco era composto pelas fontes JEDP – Javista, Eloísta, Deuteronômio e Sacerdotal, elaboradas desde o século X a.C. na corte davídico-salomônica até o século V a.C., com Esdras, na Jerusalém pós-exílica.
F. V. Winnet, professor de Van Seters, em conferência feita em 1964, levantou uma série de dúvidas sobre os fundamentos da Hipótese Documentária. Winnet não aceitava a fonte E como um documento independente. Quando muito, admitia o pesquisador, ela poderia ser uma revisão de mais antiga tradição patriarcal e não poderia ser encontrada no Êxodo e Números. Isto porque o desenvolvimento literário do Gênesis teria ocorrido de modo independente de Êxodo e Números até o estágio final da composição do Pentateuco, quando então foram organizados e combinados pelo Sacerdotal (P). Assim, duas diferentes fontes deveriam ser vistas dentro do material J do Gênesis: uma mais antiga e outra da época do exílio. Com um detalhe: estas fontes não seriam documentos independentes, mas complementos de outras mais antigas. O mesmo deveria ser dito do P.
Embora a proposta de Winnet não tenha causado repercussão, Van Seters, examinando as tradições sobre Abraão, como dissemos, percebeu que episódios paralelos – como a história de Sara “irmã” de Abraão em Gn 12,10-20;20,1-18;26,1-11 – não são documentos independentes agrupados por redatores, mas sua relação é de complementação: Gn 12,1-20 corresponde ao J mais antigo de Winnet, Gn 20, 1-18 ao complemento E e Gn 26,1-11 ao J mais recente da proposta do professor.
Van Seters concluiu também que o material atribuído ao J mais antigo era muito pequeno, que o E consistia de uma única estória e que todo o material não-P pertencia ao javista mais recente.
Percebendo igualmente a forte afinidade do J com o Dêutero-Isaías, e também que a forma da promessa da terra no J era um desenvolvimento posterior daquela encontrada no Deuteronômio e na tradição deuteronomista, Van Seters concluiu que o J deveria ser visto como um autor pós-D, e que a ‘Hipótese Documentária’ deveria ser totalmente revista. Van Seters publicou sua pesquisa em 1975.
Estas conclusões podem ser lidas em VAN SETERS, J. Abraham in History and Tradition. New Haven: Yale University Press, 1975. E também em VAN SETERS, J. The Pentateuch: A Social-Science Commentary. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1999, p. 59-60.
Em 1976 e em 1977 apareceram os livros de Hans Heinrich Schmid (1937-2014) e de Rolf Rendtorff (1925-2014) sobre o mesmo assunto. A crise do Pentateuco explodiu, então, em plena luz do dia e ninguém mais podia escapar da constatação de que a teoria clássica das fontes do Pentateuco, pelo menos em sua forma mais rígida, era insustentável.
H. H. Schmid, em 1976, contestou a tese de G. Von Rad de um ‘Iluminismo Salomônico’, do qual não se percebia nenhum sinal, como o ambiente no qual o javista teria nascido. Examinando uma série de textos amplamente aceitos como javistas, Schmid procurou mostrar que o J dependia fortemente da tradição profética e estava muito próximo da escola deuteronômica. A conclusão a que se chegou foi de que o Pentateuco era o produto do movimento profético, assim como o era o livro do Deuteronômio, e de que o J deveria ser visto em estreita associação com a escola deuteronômica nos últimos anos da monarquia ou na época do exílio.
Embora não tenha discutido a datação do J em relação ao D, seu discípulo Martin Rose, em 1981, chegou à conclusão de que o Deuteronômio e a Obra Histórica Deuteronomista eram anteriores ao javista.
Rolf Rendtorff, por sua vez, em 1977, retomando a ideia de M. Noth da formação do Pentateuco a partir de temas independentes, chega à conclusão de que tal independência não deve ser limitada ao período pré-literário, mas o alcança. Rendtorff não vê nenhuma conexão original entre Gênesis e Êxodo-Números, mas sim uma posterior costura deuteronomista ligando estas tradições. Donde se conclui que a ideia de fontes, tal como a J, deve ser abandonada, e que o desenvolvimento dos temas é que deve ser enfocado. Ele defende que cada unidade maior teve seu próprio processo de redação antes de ser colocada em contato com outras unidades. Seu aluno Ehard Blum, mais tarde, confirma as intuições de seu mestre estudando as tradições patriarcais de Gn 12-50.
Os estudos destes pesquisadores resultaram nas seguintes obras: SCHMID, H. H. Der sogenannte Jahwist. Zürich: Theologischer Verlag, 1976; ROSE, M. Deuteronomist und Jahwist: Untersuchungen zu den Berührungspunkten beider Literaturwerke. Zürich: Theologischer Verlag, 1981; RENDTORFF, R. Das überlieferungsgeschichtliche Problem des Pentateuch. Berlin: Walter de Gruyter, 1977; BLUM, E. Die Komposition der Vätergeschichte. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlag, 1984; Studien zur Komposition des Pentateuch. Berlin: Walter de Gruyter, 1990.
Uma exposição do pensamento destes autores pode ser vista, em português,  em DE PURY, A. (org.) O Pentateuco em questão:  As origens e a composição dos cinco primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 63-70.
Van Seters estendeu seu estudo sobre o J a todo o Tetrateuco e defendeu, em livros publicados em 1992 e 1994, que o Javista compõe uma obra unificada que vai da criação do mundo até a morte de Moisés. O J faz o trabalho de um historiador – semelhante ao trabalho do historiador grego Heródoto – no qual ele se baseia em fontes orais e escritas, dando-lhe, porém um significado teológico próprio.
O objetivo da obra do J é o de corrigir o nacionalismo e o ritualismo da Obra Histórica Deuteronomista, da qual ela é uma espécie de introdução. Por isso, o Javista é posterior ao Deuteronômio e à Obra Histórica Deuteronomista (Deuteronômio, Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis), sendo contemporâneo do Dêutero-Isaías e tendo afinidades com Jeremias e com Ezequiel. Mas é anterior ao Sacerdotal (P), que, por sua vez, não é uma obra independente, mas uma série de suplementos pós-exílicos ao D+J. O Eloísta (E) não se sustenta como documento independente e desaparece.
Van Seters conclui: “Deste modo, eu procuro resolver o problema existente entre os argumentos de Noth a favor de um Tetrateuco separado do D/OHDtr e a insistência de Von Rad em um Hexateuco, com Josué como o objetivo das promessas patriarcais. Já que o J era posterior ao D/OHDtr, ele ligou as duas grandes obras e acrescentou sua própria conclusão final ao Hexateuco através do segundo discurso de Josué em Js 24″ [5].
Só para entendermos por onde pode caminhar a discussão atual, cito aqui a proposta do arqueólogo Israel Finkelstein e do historiador Neil Asher Silberman, no livro The Bible Unearthed. Archaeology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts.New York: The Free Press, 2001, sustentando que a arqueologia hoje dá suporte à hipótese de que tanto o Pentateuco quanto a Obra Histórica Deuteronomista foram escritos no século sétimo a.C.
Os autores defendem que boa parte do Pentateuco é uma criação da monarquia da época de Josias, elaborada para defender a ideologia e as necessidades do reino de Judá. E que a Obra Histórica Deuteronomista foi igualmente compilada, em sua maior parte, no tempo do rei Josias, para fornecer suporte ideológico para sua reforma política e religiosa.
E a crise do Pentateuco continua…
GERTZ, J. C. ; SCHMID, K. ; WITTE, M. (eds.) Abschied vom Jahwisten: Die Komposition des Hexateuch in der jüngsten Diskussion. Berlin: Walter de Gruyter, 2002, xii + 345 p.: esta obra mostra como a crise do Pentateuco continua e como um possível consenso parece ainda distante. Contribuem, neste volume escrito em alemão e inglês, Jean Louis Ska, Albert de Pury, Joseph Blenkinsopp, Jan Christian Gertz, Konrad Schmid, Erhard Blum, Hans-Christoph Schmitt, Thomas Dozeman, Uwe Becker, Markus Witte, Graeme Auld, William Johnstone, Ernst Axel Knauf, Thomas Römer, Reinhard Gregor Kratz… Só gente do ramo, proveniente da Europa, Estados Unidos e Israel! E, como observa Robert Gnuse, em resenha do livro na CBQ 65/4, de outubro de 2003, p. 656, os autores concordam em rejeitar a fonte javista e sugerem que a coerência das narrativas do Pentateuco somente foi alcançada no pós-exílio com o D e o P. Para além disso, ninguém concorda com ninguém… Cada um constrói seu próprio paradigma, cada um mais sugestivo do que o outro. E comenta Gnuse que os ensaios tipificam a natureza variada e caótica da pesquisa do Pentateuco, no contexto do abandono da teoria das quatro fontes.

[1]. Estou me inspirando no artigo de RENDSBURG, G. A. Down with History, Up with Reading: The Current State of Biblical Studies, em At the Cutting Edge of Jewish Studies,  no qual o autor lamenta e critica, em conferência pronunciada no Departamento de Estudos Judaicos da McGill University, Canadá, em maio de 1999, a ruptura do consenso que passo a descrever.
[2]. Cf. THOMPSON, T. L. The Mythic Past: Biblical Archaeology and the Myth of Israel. New York: Basic Books, 1999, p. XI.
[3]. Em Nuzi, habitada principalmente por hurritas, foram encontradas cerca de 3.500 tabuinhas cuneiformes, que cobrem a vida da comunidade e de cidades vizinhas ao longo de seis gerações. Especialmente significantes são as informações administrativas, sociais, econômicas e as descrições das práticas e estruturas jurídicas. É um material que ilustra brilhantemente a vida diária de uma comunidade da metade do segundo milênio a.C. Cf. FREEDMAN, D. N. (ed.) The Anchor Bible Dictionary on CD-ROM. New York: Doubleday & Logos Library System, [1992] 1997, verbete Nuzi.
[4]. O livro de Thomas L. Thompson: The Historicity of the Patriarchal Narratives: The Quest for the Historical Abraham. Berlin: Walter de Gruyter, 1974 e Harrisburg: Trinity Press International, 2002. Leia mais sobre isto em “On the Problem of Critical Scholarship: A Memoire”, artigo de Thomas L. Thompson publicado na revista online The Bible and Interpretation em abril de 2011.

https://airtonjo.com/site1/historia-de-israel.htm

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Livros Perdidos/ não Canônicos Citados no Antigo Testamento



1. 23 livros perdidos e não canônicos citados no Antigo Testamento.


1. Livro das Guerras de Javé: “Por isso se diz no Livro das Guerras de Javé: ‘Assim como fez no Mar Vermelho, assim fará nas torrentes do Arnon. Os rochedos das torrentes se inclinaram, para descansar em Ar, e repousarem sobre os confins dos moabitas” (Números 21,14-15).
2. Livro do Justo: “Foi então que Josué falou ao Senhor, no dia em que o Senhor entregou os amorreus aos filhos de Israel. Disse Josué na presença de Israel: ‘Sol, detém-te em Gabaão, e tu, lua, no vale de Ajalão!’ E o sol e a lua pararam até que o povo se vingou de seus inimigos. Não está isto escrito no Livro do Justo? Parou pois o sol no meio do céu e não se apressou a pôr-se durante o espaço de um dia” (Josué 10,12-13).
– “E (Davi) ordenou que ensinassem aos filhos de Judá o (cântico chamado do) Arco, conforme está escrito no Livro do Justo. E disse: ‘Considera, ó Israel, os que morreram sobre os teus altos, cobertos de feridas'” (2Samuel 1,18).
3. Provérbios e Cânticos de Salomão: “Proferiu ele (Salomão) três mil provérbios, e foram os seus cânticos mil e cinco. Discorreu acerca das plantas, desde o cedro que está no Líbano até o hissopo que brota da parede. Também falou dos animais e das aves; e dos répteis e dos peixes” (1Reis 4,32-33).
4. Livro dos Atos de Salomão: “Quanto aos demais atos de Salomão e a tudo quanto fez, e à sua sabedoria, porventura não está escrito no Livro dos Atos de Salomão?” (1Reis 11,41).
5. Livro das Crônicas dos Reis de Israel: “Quanto ao restante dos atos de Jeroboão, como guerreou e como reinou, está escrito no Livro das Crônicas dos Reis de Israel” (1Reis 14,19).
6. Livro das Crônicas dos Reis de Judá: “Quanto ao restante dos atos de Roboão e a tudo quanto fez, porventura não está escrito no Livro das Crônicas dos Reis de Judá?” (1Reis 14,29).
7. Livro do Profeta Natã: “Os atos do rei Davi, tanto os primeiros quanto os últimos, estão escritos no livro de Samuel, o vidente; no Livro de Natã, o profeta; e no Livro de Gade, o vidente” (1Crônicas 29,29).
 “Quanto ao resto dos atos de Salomão, dos primeiros aos últimos, porventura não estão escritos no livro da história de Natã, o profeta, e nos livros de Aías, o silonita, e nas visões de Ado, o vidente, acerca de Jeroboão, filho de Nebate?” (2Crõnicas 9,29).
8. Livro de Samuel, o Vidente: “Os atos do rei Davi, tanto os primeiros quanto os últimos, estão escritos no livro de Samuel, o vidente, no Livro de Natã, o profeta, e no Livro de Gade, o vidente” (1Crônicas 29,29).
9. Livro de Aías, o Silonita: “Quanto ao resto dos atos de Salomão, dos primeiros aos últimos, porventura não estão escritos no livro da história de Natã, o profeta, e nos livros de Aías, o silonita, e nas visões de Ado, o vidente, acerca de Jeroboão, filho de Nebate?” (2Crônicas 9,29).
10. Livro de Ado, o Vidente: “Quanto ao resto dos atos de Salomão, dos primeiros aos últimos, porventura não estão escritos no livro da história de Natã, o profeta, e nos livros de Aías, o silonita, e nas visões de Ado, o vidente, acerca de Jeroboão, filho de Nebate?” (2Crônicas 9,29).
 “Quanto ao resto dos atos de Roboão, dos primeiros aos últimos, está escrito nos livros de Semaias, o profeta, e de Ado, o vidente, e diligentemente registrado: ‘houve guerra entre Roboão e Jeroboão durante todos os seus dias'” (2Crônicas 12,15).
 “Quanto ao resto dos atos de Abias, seu caráter e obras, está diligentemente escrito no Livro de Ado, o profeta” (2Crônicas 13,22).
11. Livros de Semaias, o profeta: “Quanto ao resto dos atos de Roboão, dos primeiros aos últimos, está escrito nos livros de Semaias, o profeta, e de Ado, o vidente, e diligentemente registrado: ‘houve guerra entre Roboão e Jeroboão durante todos os seus dias'” (2Crônicas 12,15).
12. Livro dos Reis de Judá e Israel: “Mas os feitos de Asa, dos primeiros aos últimos, estão escritos no Livro dos Reis de Judá e Israel” (2Crônicas 16,11).
13. Livro dos Reis de Israel e Judá: “Quanto ao resto dos atos de Joatão, e todas as suas guerras e obras, estão escritos no Livro dos Reis de Israel e Judá” (2Crônicas 27,7).
14. Livro dos Reis: “O relato dos seus filhos, as muitas sentenças proferidas contra ele e o registro da restauração da casa de Deus, estão escritos diligentemente no Livro dos Reis. E Amasias, seu filho, reinou em seu lugar” (2Crônicas 24,27).
15. Anais dos Reis de Israel: “Mas o resto dos atos de Manassés, sua oração ao seu Deus e as palavras dos videntes que falaram-lhe em nome do Senhor Deus de Israel, estão contidas nos Anais dos Reis de Israel” (2Crônicas 33,18).
16. Comentários de Jeú, filho de Hanani: “Mas o resto dos atos de Josafá, dos primeiros aos últimos, estão escritos nos comentários de Jeú, filho de Hanani, que observou nos Livros dos Reis de Israel” (2Crônicas 20,34).
17. A História de Osias, por Isaías, filho de Amós, o profeta: “Mas o resto dos atos de Ozias, dos primeiros aos últimos, foi escrito por Isaías, filho de Amós, o profeta” (2Crônicas 26,22).
18. Palavras de Hozai: “A oração que ele (Manassés) fez, como foi ouvido, todos os seus pecados e o desprezo (de Deus), os lugares também em que mandou edificar altos, em que mandou plantar bosques, e colocar estátuas, antes de fazer penitência, encontra-se tudo escrito no Livro de Hozai” (2Crônicas 33,19).
19. Livros dos Medos e dos Persas: “Ora, o rei Assuero tinha imposto tributo a toda terra e todas ilhas do mar. Nos Livros dos Medos e dos Persas se acha escrito qual foi o seu podere o seu domínio, a dignidade e a grandeza a que ele exaltou Mardoqueu” (Ester 10,1-2).
20. Anais do Pontificado de João: “O resto dos atos de João, das suas guerras, das empresas que valorosamente se portou, da reedificação dos muros que construiu e de todas as suas ações, tudo está escrito no Livro dos Anais do seu pontificado, começando desde o tempo em que foi constituído sumo-pontífice em lugar de seu pai” (1Macabeus 16,23-24).
21. Descrições de Jeremias, o profeta: “Nos documentos referentes ao profeta Jeremias, lê-se que ele ordenou aos que eram levados para o cativeiro que tomassem o fogo, como já foi referido, e que lhe faz recomendações (…) Lia-se também nos mesmos escritos, que este profeta, por uma ordem particular recebida de Deus, mandou que se levassem com ele o tabernáculo e a arca, quando escalou o monte a que Moisés tinha subido para ver a herança de Deus. Tendo ali chegado, Jeremias achou uma caverna; pôs nela o tabernáculo, a arca e o altar dos perfumes, e tapou a entrada. Alguns dos que o seguiam voltaram de novo para marcar o caminho com sinais, mas não puderam encontrá-lo” (2Macabeus 2,1.4-6).
22. Memórias e Comentários de Neemias: “Estas mesmas coisas se achavam nos comentários e memórias de Neemias, onde se lia que ele formou uma biblioteca, recolhendo os livros referentes aos reis e profetas, os de Davi e as cartas dos reis respeitantes às oferendas” (2Macabeus 2,13).
23. Os Cinco Livros de Jasão de Cirene: “A história de Judas Macabeu e seus irmãos, a purificação do grande templo e a dedicação do altar, as guerras contra Antíoco Epífanes e seu filho Êupator, as manifestações do céu a favor dos que pelejaram pelo judaísmo com valentia e zelo, os quais, sendo poucos, se tornaram senhores de todo o país e puseram em fuga um grande número de bárbaros, recobraram o templo famoso em todo o mundo, livraram a cidade da escravidão, restabeleceram as leis que iam ser abolidas, graças ao Senhor que lhes foi propício com evidentes provas da sua bondade, tudo isto, que Jasão de Cirene escreveu em cinco livros, procuramos nós resumir num só volume” (2Macabeus 2,23).

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Código de Hamurabi e a cópia deuteronômica

 
1. Existem diversos aspectos da legislação hebraica que se assemelham a conjuntos de doutrinas legais de povos limítrofres do Antigo Oriente. Dentre elas cabe destacar a Lei de Talião encontrada originalmente no Código de Hamurabi. 
2. Descoberto em 1903 por uma expedição francesa na antiga Mesopotâmia, esse Código prevê a famosa lei da reciprocidade, "olho por olho, dente por dente", copiada pelos hebreus a partir do Exílio Babilônico, momento que mantiveram contato direto com a cultura do Médio Rio. 
3. Também há a previsão de leis de falso testemunho, estupro, escravos, ajuda de fugitivos, entre outras. A paridade ideológica é óbvia quando colocada junto aos textos de lei de Deuteronômio, do Código da Aliança, algumas referências à liturgia cúltica da religiosidade antiga judaica, etc. Escrita por volta do século XVIII a.C, confirma sua existência bem mais antiga a de seus vizinhos. 
4. Esse conjunto de regras logrou tal nome pois é atribuída ao grande Rei Hamurabi, que claramente objetivou como monarca a expansão do Reino para regiões conquistadas da Suméria e Acádia, Ur e Isin. A construção de Deuteronômio, ainda que bastante tardia em relação ao Código, tenta se situar tão antiga quanto, garantindo a criação de histórias que se referem até Abraão e o mito de sua importância local em séculos tardios. 
5. Transformada em um dos mais importantes regulamentos hebreus, configurou-se a partir da ideia de que Moisés as recebeu diretamente de YWHW no monte Sinai ou Horebe (a depender da tradição literária). Provavelmente essa legislação date ainda mais tardia, pois, como se sabe, os Mesopotâmicos também sofreram influência de outras culturas na formação de sua identidade nacional, destacando-se Sumérios de 4 milênios a.C.
André Francisco

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Discurso dual do Êxodo e outras narrativas





1. Em várias ocasiões, não apenas no livro do Êxodo, mas em extensa literatura hebraica, tanto da Torá como outras fontes, pode-se notar a dualidade na narrativa religiosa. A partir de uma análise exegética desses textos, não apelando para a afirmativa da historicidade nos padrões hodiernos de se ler ou narrar acontecimentos, translitera-se a hipótese fortemente testada de que a luta pela variação doutrinária dependendo do contexto político-religioso do momento em questão sempre foi representada nesse diálogo de obediência e desobediência do povo hebreu e YHWH.

2. Há sérias e consideráveis evidências de que a mitologia por trás dessas histórias sempre se tratou de luta de classes, mudanças sociais e políticas, diretamente relacionadas com o contexto religioso. Tanto por se tratar evidentemente de uma época em que o Estado se misturava ao sagrado e ambos seus serviços, como por serem os seus representantes lideres conjuntamente da mística religiosa. 

3. Difícil tarefa é desassociar essas duas importantes estruturas caso se faça um tipo de leitura exegética baseada na metodologia histórico-social. A relação dual entre o povo e YHWH sempre protagonizou essa disputa. Pode-se elencar temas aparentemente notórios para esse diálogo durante toda a narrativa Bíblica, dos quais salienta-se a doutrina, o deus a ser adorado, a política estatal, a herança monárquica verdadeira, o serviço do templo, entre outras. 

4. A definição desses conceitos para o povo, dependendo da época em que se analisa, passa pela observação de YHWH e sua aprovação ou não. E pelo uso dos serviços prestados pela classe sacerdotal e liderança política, a divindade se manifesta para dar seu parecer favorável ou negativado, apelando para o discurso da fidelidade ou infidelidade, obediência e desobediência, benção e maldição, etc.

5. É volumosa em toda literatura religiosa hebraica a notoriedade dos dados que apresentam dualidade na construção semântico-metodológica da estrutura religiosa. O caso se agrava a ponto de toda narrativa se construir de acordo com mudanças pontuais e atuais do embate político da formação de Israel desde sua formação. Samaria e Jerusalém, por exemplo, não só de acordo com Êxodo, mas principalmente os livros de narrativa histórica, Reis, Crônicas, Esdras-Neemias, alguns dos profetas, enfim, vários importantes autores, disputam posição de liderança religiosa e política durante séculos a partir da discussão de YHWH e povo, do mesmo dualismo que argumenta sobre comidas puras ou impuras.

6. Raros são os episódios em que a mistificação da formação do Direito e da repartição de territórios na comunidade hebraica antiga excedem a orientação direta de YHWH a partir de seus representantes diretos- reis, profetas e sacerdotes-. O apelo para a dualidade do discurso entre a necessária obediência dos camponeses à corte, que representa a entidade, é enfadonha e estrategicamente utilizado o tempo todo.

7. Se se busca uma leitura dessa dualidade com a observação de acontecimentos de fato históricos no tempo, corre-se o prejudicial risco de se analisar os textos fora da sua ideia organizacional e narrativa originais, que a todo tempo não tenta se expor diferentemente em autodefesa, mas por ser fruto literário de uma época em que esse tipo de montagem dissertativa era a mais utilizada, mostra-se apenas como pano de fundo da principal retórica amplamente usada a qual finalidade cumpria-se no uso.


André Francisco

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Análise Exegética de Dt. 12,13-19


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1. Certamente, o discurso deuteronômico está em relação polêmica com os discursos sacerdotais, porém, mais uma vez, devem se perceber os limites da categoria de dessacralização. O fato do Código Deuteronômico não se ocupar de detalhar os rituais sacrificiais não pode ser interpretado como forma de secularização da religião sacrificial, ou como uma forma de escapar do ambiente “mágico” (termo também inadequado) da literatura da tradição sacerdotal

2. O caráter sagrado das ofertas – ou seja, sua destinação ao consumo perante a divindade – permanece, mas é transritualizado. Assim, o que é alterado é o impacto socioeconômico das ofertas. Ao invés de servirem quase que exclusivamente ao sustento do ritual institucionalizado e controlado pelo Templo e/ou Estado, passam a servir primariamente para a manifestação de solidariedade para com os empobrecidos. Por isso se destacam nesta lei a alegria e a solidariedade que devem formar o meio-ambiente do culto. A alegria é, primeiramente, consequência da bênção de YHWH, recebida no espaço cotidiano, e celebrada no espaço litúrgico, especialmente através da refeição – que estabelece também laços de solidariedade com as pessoas dependentes, que passam a participar do excedente da produção, consumido no culto, e não na tributação. 

3. Alegria e solidariedade não podem ser separadas segundo a concepção deuteronômica de vida e culto. É bastante provável que a concepção deuteronômica da alegria tenha se desenvolvido em polêmica contra discursos estatistas e litúrgicos sincretistas. Muffs destacou a presença da alegria em documentos mesopotâmicos de doações de superiores sociais a subalternos:

Em muitos dos assim-chamados documentos kudurru (monumentos fálicos usualmente cobertos com símbolos divinos), nos quais reis davam terra a cortesão, ou reis ou deuses outorgavam renda a sacerdotes; a fim de assegurar a finalidade da doação, as manifestações físicas de alegria/vontade do doados são descritas em detalhe [...] reis, sacerdotes e cortesãos, todos recebem seus dons incontestáveis através da ‘alegria’ de seus mestres, humanos ou divinos.
4. Não é possível estabelecer com precisão uma relação interdiscursiva com tal concepção estatista mesopotâmica, mas ela não é absolutamente improvável. Fica aqui a menção da possibilidade, sem, porém, afirmar positivamente a sua existência. É mais provável a relação interdiscursiva destacada por G. Braulik que notou esta característica veementemente, contrapondo a concepção deuteronômica da alegria com a presente – também em forma interdiscursiva não mostrada – em textos como Os 9,1; Is 22,13; 9,2 e 30,29. Em Os 9,1 “Não te alegres, Israel: não exultes como os povos! Porque tu te prostituíste longe de teu Deus, amaste o salário de prostituta em todas as eiras do trigo”, a polêmica é contra o culto baalizado a YHWH, no qual “a alegria se degenerara em êxtase cananeu. O regozijo e o alarido incontroláveis vinham da ‘cananeização’ do culto”

5. Já em Is 22,13 e 30,29 a denúncia profética se dirige contra, respectivamente, o povo de Jerusalém que se alegrara com a sobrevivência da cidade sob o cerco de Senaqueribe, apesar da destruição de quase todo o interior (lamentada por Miquéias em 1,89.10-16), e contra a Assíria e seu discurso imperialista. Não é possível, portanto, entender a ênfase deuteronômica na alegria litúrgica como uma forma de legitimar a centralização do culto no Templo de Jerusalém, especialmente com a negação da celebração familiar da Páscoa. Mais uma vez, é preciso citar Braulik, que percebeu bem a relação entre alegria e bênção, e destacou que 

Quando o Deuteronômio reconhece YHWH tão entusiasticamente como o doador de todas as bênçãos, isto é o resultado de um tremendo conflito. É YHWH, não Baal, que outorga fertilidade e sucesso ao esforço humano. O mandamento para regozijar-se – o núcleo mesmo do culto israelita – também é orientado na direção do ‘primeiro mandamento’, o principal mandamento.
6. Assim, a determinação de um único lugar legítimo para a adoração sacrificial cumpre uma função mítico-teológica fundamental: prevenir os judeus de se deixarem levar pela idolatria e/ou pelo poli-javismo. A adoração, nos vários santuários regionais, era oportunidade para o sincretismo religioso, e para a identificação de YHWH com Baal ou outros deuses. Para o movimento deuteronômico, a unicidade do lugar de culto seria uma garantia de ortodoxia cúltica e teológica. O alvo dessa proposta não é, como alguns defendem, primariamente a idolatria “popular” praticada pelos habitantes das vilas do interior. É, sim, a idolatria assumida e/ou promovida pelo Estado monárquico ao adotar a mentalidade assíria.

7. Mais importante, porém, é que este lugar seria garantidor da ortopraxia, ou seja, da unidade do povo, conseguida mediante a justiça, fruto da solidariedade – tema que retornará enfaticamente na seção de 14,22-15,23 que une leis cúlticas com leis econômicas, em um arranjo plenamente compreensivo e coerente à luz da concepção deuteronômica do culto adequado a YHWH. Este jogo dos espaços sagrados (litúrgico e cotidiano) aponta para o tema, a meu ver, fundamental, do projeto cúltico deuteronômico: a reorganização do espaço sagrado, de modo a criar condições para a plena vivência da bênção divina e da unidade do povo, obediente à vontade de YHWH.

 8. Assim, novamente, a determinação de um único lugar legítimo para a adoração sacrificial cumpre uma função mítico-teológica fundamental: prevenir os judeus de se deixarem levar pela idolatria e/ou pelo poli-javismo.

André Francisco

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