1. Diversas pessoas usam textos da bíblia hebraica para opinar sobre moral e ética nos dias atuais, elencando que, como palavra de deus, tudo o que está escrito deve ser seguido fielmente como regra de fé e prática. No âmbito da discussão de gênero, principalmente, a utilização de Levítico é bastante ampla, na defesa de que deus estabeleceu que relação homoafetiva é proibida entre seu povo, logo, tal prática é divinamente censurada tanto para aquele quanto para esse tempo.
2. O problema que se tem com esse tipo de interpretação é quando há a tentativa de se equiparar ideias sobre moral e ética de uma cultura milenar como a judaica, que se utilizou de diversos tipos de abusos para consolidar seus textos sagrados, visando a se referir dogmaticamente ao que hoje em dia deve ser entendido como certo e errado. A questão fica de difícil solução quando dada atenção a outros textos, como exemplo, do próprio Levítico, sob a ótica do fiel cumprimento dessas diretrizes pela comunidade religiosa atual. Vejamos um conceito considerado criminoso atualmente, que na época de sua redação, pela comunidade hebraica, era visto como parte de um culto lícito:
Se um homem consagrar ao Senhor por interdito alguma coisa que lhe pertence, seja qual for esse objeto - uma pessoa, um animal ou um campo de seu patrimônio - ela não poderá ser vendida, nem resgatada: tudo o que é votado por interdito é coisa consagrada ao Senhor.
Nenhuma pessoa votada ao interdito poderá ser resgatada: ela será morta.
3. Os versículos supracitados fazem parte de um capítulo que trata do oferecimento de votos a YHWH para santificação e uso próprio. Inclui nessa lista, inicialmente, qualquer tipo de "bem" sob a posse de uma pessoa israelita, seja animal, casa, pessoa, terreno, colheitas, etc. A lei é bem clara ao dizer que alguns desses oferecimentos poderiam ser resgatados, caso o oferecedor os quisesse de volta. São estipulados alguns valores para cada item enquanto no resgate. Essa avaliação dos valores era feita pelo sacerdote do templo, onde toda a contribuição do povo teria de ser destinada.
4. No caso dos versos 28-29, existe o oferecimento especial chamado de interdito ou anátema, em algumas traduções. Também prevê a dação de "bens" particulares do fiel judeu: pessoa, animal ou campo. Como o voto de anátema ou interdito possuía caráter especial, o escritor deixa claro a observação de que esse tipo não poderia ser resgatado. Ou seja, os valores anteriormente determinados para que o oferecedor recuperasse seu bem não eram aplicados ao tipo especial, já que existe uma cláusula que enfatizava tal distinção:
"tudo o que é votado por interdito (anátema) é coisa consagrada ao Senhor".
5. Como citado, os votos de anátema não podiam ser resgatados. E nesse tipo de voto incluía -se o oferecimento de pessoas em sacrifício: "nenhuma pessoa votada ao interdito poderá ser resgatada: ela será morta." Essas pessoas normalmente eram escravas já sob posse do sr. hebreu, comprados ou escravizados como espólio de guerra. Capítulos anteriores no mesmo livro de Levítico- como em outros livros- regulamenta bem a questão de como deveria ser o tratamento com escravos, inclusive no que se refere à utilização sexual das virgens capturadas.
“ Quando forem à guerra, e o Senhor vosso Deus vos entregar o adversário nas vossas mãos, se virem entre os cativos uma formosa rapariga e um de vocês a tomar por mulher, que a leve para casa. Ela terá de rapar a cabeça e cortar as unhas, mudará a roupa que trazia quando foi capturada, e ficará em casa um mês inteiro para poder chorar a perda do pai e da mãe. Depois então poderá casar com ela. Contudo, se depois disso vier a verificar que não gosta dela, deverá deixá-la ir-se embora livre - não pode vendê-la ou tratá-la como escrava, porque a humilhou.” (Deuteronômio 21.10-14, TDL.)
6. A escravidão era comum entre povos antigos, inclusive os hebreus com seus regulamentos considerados éticos por grande parte dos religiosos atuais.
7. O sacrifício humano foi bastante praticado por religiões diversas do mundo antigo. Tanto para apaziguar a ira dos deus como para agradá-los em oferendas e rituais cúlticos. A imagem de Jesus em oferecimento humano retrata bem o impacto desse tipo de liturgia dos mais diversos seguimentos religiosos. O texto de Levítico 27, 28-29 dá carta branca para esse comportamento.
8. A questão que se deixa como abordagem reflexiva é a seguinte: é possível se posicionar e argumentar sobre comportamentos relacionados a moral, ética e direito, no mundo de hoje, utilizando-se de textos religiosos de um povo oriental milenar como o da bíblia hebraica, a fim de se extrair a definição do que é certo e errado e, a partir dela, interferir ativamente na vida das pessoas, mesmo elencada- como supracitado- a absurda percepção da realidade que eles dispunham, a ponto de sacrificarem humanos em oferecimento litúrgico a seus deuses?
André Francisco