1. Um
dos obstáculos que se enfreta ao ler o livro do Gênesis é a presença
de diferentes cosmologias interagindo no processo
exegético-hermenêutico. É relativamente comum que se leia Gn 1-3 a
partir de uma cosmologia cristã medieval, ou de uma das cosmologias
modernas científicas. Em qualquer desses casos, cria-se situações
exegeticamente inadequadas. Por exemplo: se se tenta, do ponto de vista
de um criacionismo cientificista, fazer o relato de Gênesis combinar com
os achados científicos, normalmente interpreta-se erradamente o texto
bíblico. Se se tenta, por outro lado, a partir de uma cosmologia
mecanicista do mundo, avaliar o relato de Gênesis, normalmente ele é
considerado inválido cientificamente. Nenhuma dessas alternativas é
adequada para a compreensão do texto bíblico
2. A
cosmologia vétero-oriental, com variantes, é claro, concebia a o mundo
em três níveis: (a) o nível superior, celestial ou divino, habitado por
um grande número de deuses e deusas – em constante comunicação com o
nível intermediário e, em menor grau, com o nível inferior – localizado
acima do “céu” visível a olho nu; (b) o nível intermediário, da terra,
concebido mais ou menos como uma lâmina quadrada sustentada por colunas
acima das águas do nível inferior, habitado por criaturas não-vivas e
vivas – distinguidas, por sua vez, entre “humanos” e “animais” (entre
aspas, porque as concepções de “homem” e “animal” não eram as atuais
modernas); e (c) o nível inferior, localizado debaixo da terra, que é o
mundo da morte, habitado por deuses (vivos) e seres humanos (mortos), no
qual se encontra o “mar” ou os “rios” originários. [Um lembrete: os
termos “mundo” e “cosmologia” são, em certo sentido, anacrônicos, na
medida em que veem do mundo grego e do mundo moderno. Os termos
vétero-orientais para o que se chama de mundo eram de tipo concreto e
não abstrato, como, por exemplo, a hendíade “céu e terra”].
3. Uma
particularidade dessa cosmovisão, no tocante às divindades, graças à sua concepção híbrida, é que elas tanto habitavam nos níveis
superior e inferior, quanto no terreno: em montanhas, que faziam a
comunicação entre o nível intermediário e o superior (daí o formato
antigo dos templos mesopotâmicos, na forma de torres imitando
montanhas), ou em nascentes de rios, ou em lugares desertos, ou, enfim,
em locais litúrgicos encontrados ou construídos por seres humanos.
4. Não
havia, então, uma compreensão de leis impessoais regendo a vida do nível
intermediário – tudo o que acontece “aqui” acontece mediante a
atividade dos deuses,de
modo que eles devem ser: (a) temidos, posto que podem matar; (b)
servidos, posto que possuem um poder supremo; (c) cultuados, posto que
podem ser influenciados para fazer coisas boas em nosso benefício; e (d)
estudados, posto que podemos conhecer como eles fazem a ordem do mundo
funcionar.
5. Do
ponto de vista do espaço, um detalhe importante é a vinculação estreita
entre o cosmos e o templo – o lugar sagrado de adoração. De modo geral
pode-se dizer que o templo é o microcosmos, a ponto de se poder perceber
que todo relato de criação tem a ver com relatos de origem ou dedicação
de templos, como, e.g. no relato acádico da fundação de Eridu (cidade e
templo):
"Uma
casa sagrada, uma casa dos deuses num lugar sagrado não tinha sido
feita, juncos não tinham crescido, uma árvore não fora criada, Um tijolo
não fora assentado, um molde para tijolo não fora construído, Uma casa
sagrada não tinha sido feita, uma cidade não fora construída, Uma cidade
não tinha sido feita, uma criatura vivente não fora colocada (aí).
[...] Todas as terras eram mar. A fonte no centro do mar era um canal.
Então Eridu foi feita, Esagila foi construída, Esagila cujos alicerces
Lugaldukuga assentou dentro do Apsu. [...] Os deuses, os Anunnaki ele
criou iguais. A cidade sagrada, a morada do prazer para seus corações,
assim solenemente a chamaram. Marduk construiu uma armação de junco na
superfície das águas. Ele criou o barro e despejou-o na armação de
junco. Para instalar os deuses na morada do prazer para (seus) corações.
Ele criou a espécie humana”.[1]
6. É normal na teologia conservadora a tentativa de conciliar tais eventos com a ciência moderna, ainda que reestruturada através de técnicas como o Designer Inteligente e adaptações à Evolução Darwinista. Porém, o simples comparativo ao processo de formação cosmogônico de povos e culturas do passado prova que é mais fácil relacionar o texto hebreu com aspectos de seus vizinhos limítofres e suas ideias a, temporalmente, com conceitos modernos sobre criação e cosmos.
André Francisco