1.
Parafraseando anacronicamente Marx, a história da humanidade é uma
história de luta pela sobrevivência. Nada mais lógica essa
afirmação, obviamente porque se refere a seres vivos assim como
tantos demais que conhecemos, por enquanto, na terra. E, pelo que se
pode inferir, manter-se em vida faz parte do jogo a praticamente todo
custo.
2.
Todo custo no sentido de que sempre apelamos para os mais diversos
recursos disponíveis a fim de confrontarmos a ideia assustadora de
que, um dia, inevitavelmente, deixaremos de existir. Talvez mais
"assustadora" para alguns que não conseguiram (ou não
quiseram) aceitar a prova natural de que a morte nada mais é do que
o momento em que nossas consciências, corpos ou qualquer coisa do
estado subjetivo do nosso ego voltará à condição anterior ao
próprio nascimento. Ou seja, a da não existência. Tentando
exemplificar, nutrindo-me com um pouco de existencialismo, poderia
aprofundar a ideia e considerar o retorno não ao nascimento
biológico em si, porém àquela condição que costumo chamar
de última memória lúcida. Um exercício mental
prático deixa bem ilustrada essa definição de maneira retórica:
onde eu estava antes da última memória que tenho conscientemente de
mim mesmo? Se a análise for feita honestamente e não se apelar para
fotografias ou filmagens e logicamente para a realidade física
externa de se estar em algum ponto naquele momento, possivelmente, a
resposta será lugar nenhum. Nesse contexto, é importante comentar
que tudo funcionava perfeitamente e dentro dos padrões naturais do
universo independentemente de consciências humanas pontuais. Enfim-
pois a ideia aqui não é discutir a filosofia da coisa existencial-,
somos mais um ou menos um.
3.
Voltando à questão dos recursos destaco a hipótese da vida após a
morte e dos deuses. É extremamente confortável diante do cenário
amedrontador da realidade biológica e novidade do pós-morte a
suspeita de que viveremos para sempre. Tanto na religião quanto na
ciência percebemos que muita força de trabalho é aplicada na
tentativa de gerar a maior longevidade possível das pessoas humanas.
A primeira apela para a abstrata mentalização do mundo metafísico
e suas características a depender dos pormenores e diversidades
doutrinárias e metodologicamente formadas ao redor do mundo.
Simplificando, depende da maneira com a qual cada tradição
religiosa lida com o tema. Varia local e estruturalmente de
acordo com a ideia que se tem de seu estabelecimento e prática
cúltica. Exemplo, o tema é tratado diferentemente entre um hindu e
um judeu ortodoxo, ou Católico Romano e Aborígenes Australianos. O
céu protestante faz sentido para os protestantes, mas para tribos
indígenas isoladas a hipótese desse local se identifica melhor com
a nascente de um rio que passa por perto, como os Pirarrãs. O
Ragnarok Nórdico sensibilizou diversos povos por longos períodos de
tempo, mas não convenceu suficientemente os cristãos conquistadores
de suas terras. Pois bem, mesmo diante de algumas divergências
pontuais a ideia é que sempre há similaridade no sentido final da
explicação metafísica, a de que, para se ter algum sentido na vida
humana, é necessário viver para sempre.
4.
Do outro lado, os deuses, talvez conectadamente com a primeira
hipótese- excetuando-se aqui alguns seguimentos que não
necessariamente acreditam na existência de seres governadores
(budismo)-, são a abstração de especial destaque da história
humana a qual é possível se conhecer documentalmente. Desde os
primórdios da comunicação escrita ou rupestre, é notória a
capacidade que temos em criar determinadas figuras com o objetivo de
representar algum símbolo imagético superior. Esse objeto
iconolátrico normalmente carrega o sentido de preenchimento de
lacunas do conhecimento. Uma rápida observação das tradições
religiosas mais antigas garante tal afirmação, pois sempre que
qualquer coisa que superasse a expectativa ou nível observacional
disponíveis à época em destaque, criando-se uma lacuna irreparável
entre a explicação comum e o dado novo, fazia-se necessário
atribuir à entidades divinas tais tamanhas façanhas e sempre a se
especular o motivo coerentemente com alguma situação social ou de
sentido adjungido a grupos humanos. O que se quer dizer é que a
falta de conhecimento- seguindo a epistemologia moderna- para
explicar acontecimentos novos, notoriamente os que fugiam da
capacidade técnica e teórica desses povos, desaguavam na
metodologia da cosmovisão mítico-religiosa.
5.
Seguindo esse ideário mítico, político e religioso, as
civilizações dispunham de respostas técnicas fundamentadas sempre
na especulação metafísica abstrata com pouquíssimos lampejos de
exceção. É fácil perceber essa referência, por exemplo, através
de uma análise aprofundada de cosmogonias antigas como dos Sumérios,
Fenícios, Egípcios, Orientais. Adiante ao quadro cronológico os
Mesopotâmicos, Hebreus, Babilônicos, Persas, Gregos, Romanos,
Nórdicos entre outros.
6.
Interessante de se observar é que normalmente esses textos não
tratavam apenas de questões relacionadas ao pós-morte, mas
minimizavam os efeitos de catástrofes e problemas de saúde
generalizados. Textos do médio oriente e consequentemente dos
hebreus- que beberam dessas fontes- classificavam em várias frentes
os problemas relacionados com as enchentes esporádicas comuns à
região alagada do entre rios. Desse tipo de alusão nasceram
distintas narrativas de Dilúvios mundiais, sempre salientando apenas
a área conhecida até então como porção habitada. O mito de Enuma
Elish, a Epopeia de Gilgamesh e de Atrahasis, O Mito de Noé
hebreu são destaques de narrativas camponesas dessas calamidades de
fenômenos da natureza. As disputas entre Marduk e Tiamat para a
criação do cosmos representavam na mitologia mesopotâmica a
fundação das estruturas do universo e também o lado positivo e
negativo de todas as coisas, inclusive doenças e curas. A narrativa
hebreia da saída do povo do Egito sob a praga da enfermidade que
devastou parte da população egípcia indica a atuação de YHWH
diretamente na produção do mal necessário para o resultado
vencedor de seu povo até então escravizado. Claro que redobra a
importância de classificarmos esses dados apenas como mitológicos
pois a responsabilidade de sua formação ficou, como se conhece, nas
mãos de seguimentos religiosos elitizados e estruturalmente formados
muito tempo depois do teórico período de historicidade em que não
literalmente ocorreram.
7.
Há quem relacione problemas graves de saúde e fome no
continente africano com o mito da marca de Caim previsto na
literatura hebreia do Bereshit (Gênesis), em que há uma maldição
de YHWH sobre esse personagem a qual, nessa visão, habitou o
continente após fugir e sequencialmente disseminou em seus
descendentes a praga instaurada divinamente.
8.
Nesse cenário sucintamente supracitado, fatalmente se nota a
perambulação da ideia abstrata do divino a lidar com situações
reais e naturais do dia a dia do mundo antigo. Atualmente não é
diferente. Segue-se a metodologia mítica para se atribuir a seres
superiores toda a estrutura pragmática do jogo da vida; a maneira
com que se maneja a imaginação depende do seguimento de fé e credo
das comunidades ou individuais. Grande parte dos fieis cristãos, por
exemplo, assimila o adestramento de que há um controle rigoroso de
YHWH diante de qualquer caso factual que se possa existir. Seja para
o bem da espécie ou para o mal, o soberano mantém essa
característica dogmática de saber e controlar tudo e aposta nos
resultados naturais de sua própria criação apenas atuando
pontualmente quando quer com benesses e, lado a lado, eximindo-se da
culpa dos males inevitáveis. Atua ao assumir tal posição
emancipada, praticamente- em se tratando da teologia da crise
moderna-, classificasse como o "totalmente outro" de Karl
Barth. Nessa visão religiosa o ser supremo lidera os eventos de
longe e de perto ao mesmo tempo, sempre na esteira de sua vontade ou
bel prazer. O momento ativo da dinâmica de contato da deidade com
humanos é objetiva no mundo real e completamente dependente da forma
a que estes inatamente entendem em suas micro-realidades e
interações. Ou seja, a conclusão óbvia que se chega é que só há
possibilidade de perceber deus atuando quando atribuímos a nossa
pequena parte de realidade as teorias que já temos em mente sobre
Ele e que, corriqueiramente, recebemos por tradição através do
meio de inserção, cultura, sociedade.
9.
Na pandemia, na doença, no tsunami, nas guerras, nos conflitos do
dia a dia, na morte, na vida, no emprego, no desemprego, na tristeza,
na alegria, no prazer, no desprazer, na bonança, na falta, na
riqueza ou pobreza, enfim, na sobrevivência humana, no jogo de ações
e reações internas e externas ao ego, a abstração da ajuda do
alto surte efeito para cada mente que se apropria de seu conjunto de
informações e carece diretamente desse "ópio" mental
para se sentir melhor- no subjetivo- ou ver o melhor e pior-
objetivamente. É oportuno separar em duas maneiras as lentes da
capacidade interpretativa e observacional da realidade que dispomos,
subjetiva e objetiva, para criarmos uma distinção importante na
análise. Em referência direta à subjetividade, normalmente, o
enquadramento do mito produz efeito de se sentir parte de um todo
coerente, lógico, de proteção e paz interior. O todo custo da
sobrevivência depende do bem estar do indivíduo em si mesmo, do
equilíbrio emocional e afetivo diante das situações de infinitas
problemáticas do existir. Os deuses se encaixam muito bem nesse
diapasão. No outro lado, o da objetividade, o lugar dos supremos na
mente do homem notador está mais voltado ao
controle externo e decisão em última instância de casos as quais
superam suas capacidades. Em melhores palavras, tudo que acontece ao
redor deve ter um porquê e, na abstração, esse porquê não está
à deriva do acaso, no entanto, no croqui do controle divino. Como se
a realidade fosse um arquitetura previsível e programa não por si
mesma e suas regras físicas, mas que depende a todo custo da
manutenção de quem a produziu.
10.
Não há mais espaço.
11.
Um breve conclusão. Sobreviver é instintivo e é aspiração de
todas as espécies vivas catalogadas. Para que isso aconteça
precisam se valer tanto de ferramentas físicas como de abstratas
(essas mesmas). No segundo caso encaixam-se as mais evidenciadas na
história no aspecto religioso, a ideia da vida eterna e da realidade
dos deuses. A depender do seguimento cúltico e da doutrina produz-se
determinada concepção do pós-morte como também da comunicação
das entidades supremas. Normalmente se apela para esses dois vieses
para satisfazer lacunas existenciais que surgem com descontroles
naturais como catástrofes, pandemias e outros. Diante do momento em
que se passa a situação anormal surgem novas teorias míticas ou
são reforçadas as que já existem. Quando a anormalidade se finda
essas mesmas interpretações são usadas para analisar o passado
breve e tentar dar um sentido maior para todos os acontecimentos e,
no caso humano, sempre centralizando e comunicando as informações,
motivos, fatos e dados dos ocorridos com o sentido do próprio
existir.
André Francisco
André Francisco