1. Tradicionalmente- ainda que, quando analisados pormenores históricos políticos mais aprofundados, discorde-se, Martinho Lutero cravou as 95 teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg com a ideia de que as indulgências papais e outros dogmas da Igreja Católica Romana estavam equivocados ao serem comparados ao conteúdo das Sagradas Escrituras.
2. As indulgências funcionavam como um pedágio para o fiel obter a graça redentora do Cristo. Um valor era dado à igreja, através de seus santos padres, para que nomes fossem aceitos no céu após a morte, como também pecados perdoados na terra.
3. Lutero discordava disso e acreditava que todas as pessoas poderiam acessar diretamente às benesses divinas sem precisar depositar qualquer valor monetário nos cofres da Igreja. Na visão do reformador, havia um caminho desinstitucionalizado entre a humanidade e Deus, garantido na morte e ressurreição de Jesus 1500 anos antes. O papel da instituição religiosa era secundário, apenas sendo uma representação de comunhão e fraternidade entre os cristãos e não um meio necessário sem a qual ninguém poderia se chegar ao Salvador.
4. Logicamente a Igreja Católica discordou do posicionamento revolucionário do monge agostiniano rebelde e o excomungou. Apadrinhado pela nobreza Alemã e pela vontade política do Estado de se libertar da soberania institucional do clero da Itália, conseguiu dar início ao que ficou conhecido como Reforma Protestante e Igreja Luterana, epicentro do movimento que cisou a cristandade até os dias atuais em proporções jamais vistas.
5. Mas qual a relação de Lutero com culto online?
6. A ideia da reforma luterana inicialmente foi a de romper por completo com a absurda dependência a qual a Igreja Romana, ao longo de milênios, criou teológica, litúrgica e culturalmente entre seus ritos e estrutura em relação a seus membros. As indulgências e disputas políticas dos estados soberanos incipientes foram simplesmente a "gota d'água" como se conhece em livros de história da igreja. Não havia liberdade para que uma pessoa comum fizesse qualquer esforço para se chegar espiritualmente a Deus sem passar pelos mecanismos da tradição romana.
7. Um cenário de institucionalização total da fé em torno dos dogmas e tradições e liturgias que proporcionavam o único modus de expressar a vivência cristã. Lutero discordava disso assim como outros antecessores na reforma: Wyclif, Hus, Tyndale, etc.
8. (Caso queira se inteirar sobre a Reforma Protestante leia alguns livros de história da igreja).
9. Atualmente, as igrejas que representam a Reforma proposta nas 95 teses são tradicionalmente conhecidas como evangélicas. Diante do cenário mundial que se vive, na epidemia do coronavírus, diversos seguimentos resolveram usar a tecnologia a seu favor, criando o que se popularizou como "culto online" ou "live", em que as pessoas são convidadas a se conectarem em rede social (normalmente Facebook ou Instagram), para acompanharem alguma coisa que se parece como um devocional televisionado.
10. A fim de se evitar aglomeração, normalmente o Pastor da Igreja, junto de poucas pessoas ou sozinho, inicia a liturgia com o mesmo rito já praticado em dias normais: hinos, leitura devocional da Bíblia, orações e pregação. Os telespectadores acompanham a apresentação e teoricamente se conectam a Deus de alguma forma intermediada pelo templo. A pergunta que se faz é: há necessidade dessa intermediação para se cultuar? A Reforma Protestante do passado não combatia necessária e diretamente essa conexão entre fiel, templo e sagrado? O que justifica o membro cristão, que participa todos os dias por anos de seus ritos do templo, conectar-se à distância com a centralização do espaço sagrado para se sentir alcançado pela graça?
11. Talvez o movimento protestante atual tenha se transmudado daquilo que havia sido inicialmente em sua propositura. A institucionalização do sagrado já não é apenas fetiche da Igreja Romana há mais de 500 anos. Grande parte das igrejas evangélicas também se adaptaram a essa manutenção do sagrado dentro de si, objetivando oferecer um produto/resultado da espiritualização de seus próprios mecanismos, inclusive a sua estrutura eclesiástica e a eucaristia (santa ceia).
12. Obviamente que existe a possibilidade de se usarem justificativas neotestamentárias ou Bíblicas para esse tipo de modernização, assim como, a meu ver, para qualquer coisa que seja possível imaginar em uma mente humana (não é o caso aqui discorrer sobre a alegorização textual da Bíblia maquiada em interpretação espiritual), mas partindo de um ideário comum, apresentado por uma visão tradicional e conservadora dos textos mais básicos da hermenêutica cristã e, a partir de uma visão teológica protestante geral, visualiza-se facilmente a reprodução daquilo que o próprio movimento já combateu; não simplesmente como um dos pontos de disputa interpretativa histórico, porém, seu principal.
13. Diante disso, observando sempre de fora, é possível notar a diversidade de manifestações do movimento religioso a partir das necessidades contextuais e locais a que se subordinam. A adequação rotineira, combustível de sustentação de praticamente todas as formas de espiritualidade humana, às mudanças do cotidiano.
André Francisco