1. A crítica histórico-literária há muito tem analisado determinados recortes
historiográficos, de diversos gêneros: sejam sagas, lendas, anais, escritos,
mitos, listas, prosas, poesias, cânticos, sapienciais, entre outros, em todo o
texto que compõe a tradição escrita da Bíblia Hebraica. Diante disso, consegue
selecionar e classificar diferentes autores no material a que se debruça a fim
de retratar sua origem e composição e perceber, consequentemente, utilizando-se
de ferramentas disponíveis na ciência exegética como arqueologia, história,
antropologia, sociologia linguística e baixa crítica, seu teor e conteúdo.
2. Todo
esse trabalho busca, principalmente, retratar o Sitz im Leben da produção desses documentos e traçar o panorama
mais confiável possível de sua formação no seu próprio conjunto social,
destacando, dessa forma, minúcias que passariam despercebidas ao simples leitor
que não dispõe dessas informações tampouco prática adequada na observação
especializada de textos antigos e suas características. Como resultado dessa
correta aplicação do ferramental científico-acadêmico a que faz uso, consegue
atingir interpretação e percepção aprimorada daquilo que observa.
3. Em um
exercício dinâmico de observação de hipótese documental tem-se, aqui, um personagem
importante do Israel antigo, tanto na sua influência para a tradição religiosa
dos Javistas, Eloístas, Sacerdotais e Deuteronomistas, como de Estado de facto. Destaca-se uma perícope
importante de análise a partir do uso dessa metodologia: A Ascensão de Davi.
4. 1 Sm
16.14-23 descreve o que, provavelmente, seria a tradição mais antiga em relação
à saga lendária e a queda natural de Saul em substituição ao projeto de Estado
de Javé e consolidação da literatura e tradição do aparato teológico “Casa de
Davi”, que permaneceu vigorosamente até os tempos da golah pós-exílica de 530 d.C a 330 d.C, perpetuando-se também em
tempos helénicos. Nesse primeiro momento, (v. 14) o “espírito de Javé” se
retira de Saul e um “espírito mau” de Javé o perturba. Importante salientar que
o termo ruah, traduzido como
espírito, ainda nesse momento, não se particulariza em relação a sua origem de
acordo com textos posteriores em que a influência dualística da teologia Persa
moldou sua etimologia para distinguir entre o fator gerador do bom e o mau. No
caso supracitado, o mesmo agente indiscriminadamente faz o bem e o mal.
5. (v.17)
Saul pede por um harpista, (v.18) alguém sugere o filho de Jessé, de Belém, o
qual é “talentoso, hábil, corajoso, forte, de boa presença e inteligente. E o
que é mais importante, Javé é com ele”. Característica que os javistas enfatizaram
claramente através da adjetivação a fim de criar uma imagem poderosa e
importante para Davi. (v.19) Imediatamente ao chegar, Saul gosta do que vê e se
sente conectado a ele, fazendo-o seu “pajem de armas”. Segue a prosa
descrevendo que o ruah YHWH era
afastado no momento em que a harpa era tocada e o Rei sentia-se aliviado. O
versículo 23 encerra a narrativa do primeiro encontro entre Saul e Davi,
projetando o belemita diante da corte real de Israel e consequentemente
garantindo uma cobertura histórica inicial para sua Ascensão à coroa.
6. 1 Sm
17, texto amplamente aceito como uma tradição mais recente na formação da
história deuteronomista, repleto de conteúdo redacional de inclusão e conexão
de fonte P e de base eloísta em sua
essência, narra o episódio da Ascensão de Davi localizado entre uma batalha de
Israel e a Filisteia no vale de Elá. Em diversas perícopes historiográficas em
prosa da Bíblia Hebraica o conjunto de conteúdo inclusivo de personagens
heroicos e tradicionalmente analisados a partir dos gêneros saga e lenda são pontuados
em situações de guerra e, principalmente os mais antigos, com inimigos
conhecidos, Egito. Edom, Moab, Amon, e mais recentemente Filisteus, Assírios e
Babilônicos, seguindo o panorama cronológico. Em alguns casos, essas
referências se misturam por descuido dos redatores e citações são colocadas
distantes da “adjudicação histórica”, como no caso de Gn 26.1, que cita
“Abimeleque, rei dos filisteus”, sendo que, os povos do mar tiveram o primeiro
contato com as terras nômades em 1200 a.C. Bem diferente do cronograma da lenda
de Abraão que encabeça mitos e lendas do começo ou meados do segundo milênio
a.C. Como exemplo também se tem Gn 14.14 em que Abrão, na descrição do redator
eloísta, persegue os reis confederados até Dã, território este que, na tradição
da repartição das tribos, foi distribuído somente na época dos Juízes. O que
dificulta a atribuição desses livros, como a maioria da leitura leiga faz, a
Moisés.
7. Retomando
a Davi, o evento possui como base duas tradições principais distintas, a
eloísta, que define o focum do
combate entre filisteus e israelitas, e sacerdotal e toda sua característica
bastante repetitiva de delimitar notas explicativas para as prosas, detalhando
nomes, locais, datas, quantidades, listas entre outras coisas. Talvez algumas
pinceladas javistas em determinados momentos muito específicos (v. 37, 45, 46ª).
Em 1 Sm 17.1-11, a fonte P faz uso de
uma tradição mais recente da batalha, enfatizando o gigante e seu nome, Golias,
a estatura e características de armamento, a fim de retocar toda a história,
diferentemente de parte do mesmo capítulo (v. 12- 19), eloísta, em que seu nome
é omitido e a afronta se trata apenas de um filisteu guerreiro (v.16, 26, 32,
34, 48, 50, 51, 54ª, 55). O local do agrupamento da tropa é repetido nas duas
versões, (v.2, 19). Normalmente textos com características de Livros de Heróis
e Listas Reais (em que se descreviam vitórias em batalhas e seus principais
guerreiros) são narrados em duplicatas (ver Jz 7; 8- duplicata da saga dos
trezentos de Jerubaal- Gideão), como por exemplo em 2 Sm 21.14-20, a mesma
batalha de 1 Sm 17 é narrada de forma diferente. El-Hanã, o belemita, mata Golias,
o giteu (v. 19), e Jônatas, filho de Simei, mata o gigante de Get, com vinte e
quatro dedos. 2 Sm 21.18 é um texto confuso que os redatores não conseguiram
conectar exatamente com os documentos que possivelmente tinham em mãos para se
basear. Mas é visível a tentativa de conectar essas perícopes avulsas. O v.22 é
um exemplo dessa junção ao atribuir a Davi e seus servos o que havia sido
detalhado como apenas a seus servos anteriormente.
8. O v.12
apresenta Davi e sua família de Efraim, ressaltando Judá (judaítas), de forma
mais completa que em 1 Sm 16.18. Ainda no v.12 o redator cuida de acrescentar
que o belemita já fazia parte da corte de Saul “por tempo parcial”, atentando-se
para a descrição de 1 Sm 16.14-23. Porém, subsequentemente, na narrativa,
enfatiza o desconhecimento do Rei a respeito de Davi e sua família (v.55-58),
diferentemente da já apresentada no capítulo anterior. Em 1 Sm 17, na batalha
contra o filisteu, Davi Ascende ao lado do trono de maneira heroica e
categórica, desconhecida mas triunfante. Na tradição de 1 Sm 16, como pajem de
armas e harpista. Conteúdo dualístico explorado pela História Deuteronomista
nos quatro livros dos Reis de Israel (Sm 1 e 2; Re 1 e 2) e em toda confecção
posterior da história de sua vida como primeiro monarca do “reino unido”.
Guerreiro e cantor. A literatura sapiencial aposta fortemente nessa prosa para
garantir a origem de diversos Salmos ao Rei até mesmo os que descrevem momentos
próximos ao exílio babilônico e persa, 500 a 400 anos depois de seu reinado
1000- 970 a.C?. Diante do resultado da batalha e o encontro com Saul, Davi
permanece na corte e se mantem apegado a Jônatas (18.1-3).
9. Esta
análise rápida da Ascensão de Davi destacando as diferenças literárias de
acordo com a observação das suas fontes define como metodologia a crítica das
formas e tradições que geralmente são vistas em todo conteúdo da Bíblia
Hebraica. Indica, resumidamente, o trabalho dos redatores para uniformizar as
narrativas de acordo com os documentos que dispunham e suas escolas e teologia hermenêuticas,
sem se apegar, como modernamente se faz, a necessariamente retratar um fato ou
acontecimento histórico desvencilhado de gêneros textuais comuns à época. A
saga lendária, considerando aqui em definição o termo sagen de estudos em literaturas principalmente Escandinavas de
meados do milênio passado, é bastante utilizado nessa construção do Sitz in Leben, não diferente das outras
mais variadas prosas do mundo antigo que se tem conhecimento para delimitações
de paralelos interpretativos seguindo esse viés histórico-social.
André Francisco
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