Sara era uma menina que desde cedo aprendeu a ser bastante observadora.
Crescera com aquilo. Nenhum detalhe lhe passava despercebido. Desde criança
seus pais discutiam entre si, pois viam aquela bela menina, de cabelos louros,
olhos verdes e bastante energia, parada, observando aquilo que eles achavam que
fosse observado, os movimentos, as reações, as risadas, os gritos, os choros;
enquanto seus colegas se dispunham a brincar, jogar bola, pular amarelinha,
brigarem; olhava suas amiguinhas e as casas de bonecas, decoradas com suas
barbies do ano, como se não tivesse nenhum desejo de ir lá e desfrutar daquele
paraíso infantil, pelo menos aos olhos de todos. Tudo isso a chamava a atenção
de certa forma, que só conseguia brincar quando não havia ninguém por perto,
daí era uma festa, uma bagunça, brinquedos jogados para lá e para cá; uma
boneca na cozinha, uma bola na sala, jogos da estrela em seu quarto, presilhas
e cachecóis na escada, um grande carnaval inocente.
Certo dia, quando Sara acabara de completar seus 10 anos de idade, veio
ao seu pai e lhe pediu um caderno que vira outro dia em uma papelaria no centro
da cidade, enquanto caminhava com sua mãe para ir às compras num supermercado
central. Então em uma quinta-feira após o trabalho, seu pai, que era dono de
uma revendedora de carros usados, lhe trouxe aquele caderno de capa rosa, com
flores de decoração em auto relevo, em um papel de embrulho que ela nunca se
desfez, mesmo após se casar e sair de casa. No embrulho, havia um bilhete
anexado que dizia “como amor, do papai”. Depois desse dia, todos os dias, antes
de dormir, Sara se ajoelhava, fazia sua oração noturna que sua avó havia lhe
ensinado para expulsar os bichos da noite e os fantasmas que achava que um dia
iriam lhe puxar os pés, que ficavam descobertos, devido ao calor que sentia.
Depois de sua oração, Sara pegava seu caderno rosa florido na primeira gaveta
do criado mudo, ligava sua abajur com enfeites de dançarinas de balé e se punha
a escrever sua odisséia diária, todas as suas observações e suas experiências
daquele dia, narrando os fatos em primeira pessoa. Ao terminar, guardava-o
novamente e dormia feito um anjo que era. Aquilo tudo era um ritual, seu
momento sagrado de todos os dias.
Em uma noite chuvosa, logo após do jantar em família, habitualmente
preparado pela sua mãe, que sempre variava os cardápios e adorava inovar seu
leque de receitas; houve uma terrível discussão entre seus pais. A pobre sara
não sabia direito o que se passava e com toda a sua inocência, pegara seu
caderno para mostrar ao seu pai, o “fantástico” retrato que havia feito de Dolly,
a pequena pinche, que ficava presa no quarto dos fundos. O pai, como num lance
de fúria, após um dia de trabalho do cão e uma discussão com a esposa daquelas
que viram fuxico na boca dos vizinhos durante uma semana, pegou o caderno e
virou, esbofeteando seu delicado rosto. Sara, indefesa e frágil, caiu sentada,
perto da mesa, chorando aos prantos; sua mãe veio ao seu encontro, seu rosto
estava vermelho, o caderno caído e aberto em um de seus textos em sua frente e
seu pai, não acreditando no que havia feito, pegou as chaves do carro penduradas
na parede da sala e fugiu, agonizando.
Na semana seguinte seus pais se divorciaram. Vários anos depois, Sara
soube que na tarde daquele dia, sua mãe havia descoberto uma traição de seu pai
com uma de suas melhores amigas, e que discutiam a respeito disso, e pelo fato
da agressão sua mãe decidira de uma vez por todas romper com o casamento.
Contudo, naquela noite, Sara fora para o seu quarto e com grande remorso,
escondeu seu caderno em uma das prateleiras de seu guarda roupa e ali deixou
esquecido durante anos, como um símbolo de um coração partido e de uma
experiência que não desejaria ser lembrada. Apagou a luz e dormiu, sem ao menos
fazer sua oração protetora.
Algumas primaveras se passaram e agora, Sara já havia completado seu
décimo sexto ano de idade e estava prestes a deixar a escola rumo á faculdade.
Tornara-se uma menina bela, desejada por muitos rapazes e bastante inteligente,
contudo com a cabeça nas nuvens, bastante aérea, como se o mundo não fizesse
muito sentido. Era uma moça de muitas crises. Nas amizades, em relação á sexo,
religião e principalmente qual rumo deveria tomar em seu futuro. Apesar de ser
uma jóia rara para o seu meio, não havia tido bons conselheiros, exceto sua
mãe, que se esforçava arduamente para lhe transmitir ensinamentos úteis, por
isso, apesar de toda sua capacidade, não via perspectivas futuras brilhantes. O
que conseguia enxergar eram apenas caminhos relacionados ao seu contexto
familiar. Seu pai, longe de casa há anos, constitui outra família e agora pouco
se importava com aquela bela moça de olhos verdes, exceto para lhe enviar sua
pequena pensão mensal.
Meses após a conclusão do ensino médio, Sara observava seus colegas em
suas faculdades federais e particulares, cursando cursos preparatórios e
prestando concursos que para ela não tinham excitação nenhuma. Não encarava a
possibilidade de se fazer um curso superior apenas por uma carreira bem
remunerada. Apesar de ser filha de um vendedor de carros usados, tinha a idéia
de vocação bem gravada dentro de si; talvez pelas histórias que sua mãe lhe
contava quando pequena, de que sempre pedira á Deus, uma menina que fosse uma
grande mulher de sucesso em sua geração, tipo uma revolucionária, e que a
desenhando para o Criador, havia-a recebido da mesma forma que pedira. Em um dia, estava particularmente muito
triste e chorava bastante, pois havia terminado de desfazer um namoro de sete
meses com uma paixão antiga e verdadeira, dos tempos do inicio da puberdade.
Começou então, a vasculhar seu antigo guarda roupa, para procurar as cartas que
escrevera a respeito do tal rapaz e rasgar, como se fosse um esporte olímpico
pós namoro, talvez um calmante psicológico dos bons. Surpreendeu-se então,
quando encontrou aquele velho caderno rosa, com flores em auto-relevo,
recolocado dentro do papel de embrulho, com o bilhete de seu pai ao canto.
Milhares de sensações e lembranças vieram á tona, algumas boas, outras nem
tanto. Lembrara da época que era feliz, quando todos os dias orava e dormia
tranquilamente um inocente sono, onde os sonhos faziam parte de sua realidade e
o mundo parecia ser pacífico e belo, como em um conto de anjos e fadas, seus
personagens favoritos da infância.
Sara sentiu que as suas boas lembranças suplantaram as más, até mesmo no
dia da terrível briga e sorriu. Leu e releu os seus textos e descobriu
perplexamente, que suas narrativas eram ricas em detalhes e que pareciam ter
vida própria, queimando o seu peito de emoções e invadindo sua imaginação,
levando-a até os locais descritos e os momentos narrados, mesmo após alguns
anos. Percebeu ali que havia perdido grande parte de sua pequena história. Que
as fatalidades da vida, haviam lhe roubado sua imaginação e sua vontade de
viver intensamente. Havia encontrado o mundo dos adultos e nele, não havia
espaço para voar, apenas andar com suas mãos atadas pela sordidez do caos, do
egoísmo e da miséria espiritual. Sua mente havia sido cauterizada. Entendeu que
tudo o que precisava estava ali, seu dom, seu talento, sua proeza, sua força, seu
futuro, sua capacidade de observar a vida. Via se destinada á construir um
mundo de graça abundante, de esperanças possíveis, de sonhos realizáveis e
amores concretizados, um mundo em que a personagem principal teria ao menos um
momento de felicidade pura, como em sua infância. Tornara-se uma escritora,
sempre o fora. Possuía tudo o que se requeria de uma grande escritora.
Observação crítica e nata, altamente perspicaz; Habilidade com as palavras;
Inteligência lógica; Excelente imaginação e sexto sentido e uma história de
vida de intensa dor e alegria, com experiências dignas de um pódio colossal.
Ela estava pronta, esse era seu destino, transformar sua dor em prazer e sua
alegria em contentamento. Sentia-se viva. Essa era sua vocação.
Sara formou-se em pedagogia e escreveu milhares de contos infantis e
também para adultos. Casou-se com 21 anos de idade. Teve três filhos e morreu
aos 35, devido á uma parada cardíaca numa manhã ensolarada de domingo enquanto
escrevia seu quinto livro, um romance sobre a dura realidade das crianças
pobres nos guetos de países subdesenvolvidos. Ganhou vários prêmios. Era
conhecida Internacionalmente. Uma escritora de sucesso que ajudou muitas
meninas e meninos assim como ela, terem seus sonhos realizados e seguirem a
vocação de suas vidas. Seu legado perdura por várias gerações. Uma semana antes
de sua súbita morte, escreveu:
“Se me dessem o mundo todo, não trocaria por
nada do que tenho hoje. A paz e a realização de se viver com um e por um propósito,
são maiores do que todas as riquezas construídas pelo homem.”
Bendito livro de
capa cor de rosa.
Rodrigo de
Barros Mascarenhas
Nenhum comentário:
Postar um comentário