1. Certamente,
o discurso deuteronômico está em relação polêmica com os discursos
sacerdotais, porém, mais uma vez, devem se perceber os limites da
categoria de dessacralização. O fato do Código Deuteronômico não se
ocupar de detalhar os rituais sacrificiais não pode ser interpretado
como forma de secularização da religião sacrificial, ou como uma forma
de escapar do ambiente “mágico” (termo também inadequado) da literatura
da tradição sacerdotal.
2. O caráter sagrado das ofertas – ou seja, sua destinação ao consumo perante a divindade – permanece, mas é transritualizado.
Assim, o que é alterado é o impacto socioeconômico das ofertas. Ao
invés de servirem quase que exclusivamente ao sustento do ritual
institucionalizado e controlado pelo Templo e/ou Estado, passam a servir
primariamente para a manifestação de solidariedade para com os
empobrecidos. Por isso se destacam nesta lei a alegria e a solidariedade
que devem formar o meio-ambiente do culto. A alegria é, primeiramente,
consequência da bênção de YHWH, recebida no espaço cotidiano, e
celebrada no espaço litúrgico, especialmente através da refeição – que
estabelece também laços de solidariedade com as pessoas dependentes, que
passam a participar do excedente da produção, consumido no culto, e não
na tributação.
3. Alegria e solidariedade não podem ser separadas segundo a
concepção deuteronômica de vida e culto. É bastante provável que a
concepção deuteronômica da alegria tenha se desenvolvido em polêmica
contra discursos estatistas e litúrgicos sincretistas. Muffs destacou a
presença da alegria em documentos mesopotâmicos de doações de superiores sociais a subalternos:
Em muitos dos assim-chamados documentos kudurru (monumentos fálicos usualmente cobertos com símbolos divinos), nos quais reis davam terra a cortesão, ou reis ou deuses outorgavam renda a sacerdotes; a fim de assegurar a finalidade da doação, as manifestações físicas de alegria/vontade do doados são descritas em detalhe [...] reis, sacerdotes e cortesãos, todos recebem seus dons incontestáveis através da ‘alegria’ de seus mestres, humanos ou divinos.
4. Não
é possível estabelecer com precisão uma relação interdiscursiva com tal
concepção estatista mesopotâmica, mas ela não é absolutamente
improvável. Fica aqui a menção da possibilidade, sem, porém, afirmar
positivamente a sua existência. É mais provável a relação
interdiscursiva destacada por G. Braulik que notou esta característica
veementemente, contrapondo a concepção deuteronômica da alegria com a
presente – também em forma interdiscursiva não mostrada – em textos como
Os 9,1; Is 22,13; 9,2 e 30,29. Em Os 9,1 “Não te alegres, Israel: não
exultes como os povos! Porque tu te prostituíste longe de teu Deus,
amaste o salário de prostituta em todas as eiras do trigo”, a polêmica é
contra o culto baalizado a YHWH, no qual “a alegria se degenerara em
êxtase cananeu. O regozijo e o alarido incontroláveis vinham da
‘cananeização’ do culto”
5. Já em Is 22,13 e 30,29 a denúncia profética se dirige contra,
respectivamente, o povo de Jerusalém que se alegrara com a sobrevivência
da cidade sob o cerco de Senaqueribe, apesar da destruição de quase
todo o interior (lamentada por Miquéias em 1,89.10-16), e contra a
Assíria e seu discurso imperialista. Não
é possível, portanto, entender a ênfase deuteronômica na alegria
litúrgica como uma forma de legitimar a centralização do culto no Templo
de Jerusalém, especialmente com a negação da celebração familiar da
Páscoa. Mais uma vez, é preciso citar Braulik, que percebeu bem a
relação entre alegria e bênção, e destacou que
Quando o Deuteronômio reconhece YHWH tão entusiasticamente como o doador de todas as bênçãos, isto é o resultado de um tremendo conflito. É YHWH, não Baal, que outorga fertilidade e sucesso ao esforço humano. O mandamento para regozijar-se – o núcleo mesmo do culto israelita – também é orientado na direção do ‘primeiro mandamento’, o principal mandamento.
6. Assim,
a determinação de um único lugar legítimo para a adoração sacrificial
cumpre uma função mítico-teológica fundamental: prevenir os judeus de se
deixarem levar pela idolatria e/ou pelo poli-javismo. A
adoração, nos vários santuários regionais, era oportunidade para o
sincretismo religioso, e para a identificação de YHWH com Baal ou outros
deuses. Para o movimento deuteronômico, a unicidade do lugar de culto
seria uma garantia de ortodoxia cúltica e teológica. O
alvo dessa proposta não é, como alguns defendem, primariamente a
idolatria “popular” praticada pelos habitantes das vilas do interior. É,
sim, a idolatria assumida e/ou promovida pelo Estado monárquico ao
adotar a mentalidade assíria.
7. Mais importante, porém, é que este lugar seria garantidor da ortopraxia,
ou seja, da unidade do povo, conseguida mediante a justiça, fruto da
solidariedade – tema que retornará enfaticamente na seção de 14,22-15,23
que une leis cúlticas com leis econômicas, em um arranjo plenamente
compreensivo e coerente à luz da concepção deuteronômica do culto
adequado a YHWH. Este jogo dos espaços sagrados (litúrgico e cotidiano)
aponta para o tema, a meu ver, fundamental, do projeto cúltico
deuteronômico: a reorganização do espaço sagrado, de modo a criar
condições para a plena vivência da bênção divina e da unidade do povo,
obediente à vontade de YHWH.
8. Assim, novamente, a determinação de um único lugar legítimo para a adoração
sacrificial cumpre uma função mítico-teológica fundamental: prevenir os
judeus de se deixarem levar pela idolatria e/ou pelo poli-javismo.
André Francisco
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