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quarta-feira, 19 de agosto de 2020

O aborto legal e o moralismo religioso

 

 

 

1. É realmente inacreditável a maneira como determinadas pessoas conseguem opinar ou tratar assuntos moral, humana, ética, jurídica, política, socialmente sensíveis, buscando única e exclusivamente viabilizar a defesa de afirmações ideológicas pessoais, baseadas em dogmas e doutrinas religiosas antigas, sem considerar em nenhum momento o fato concreto a que, fatalmente, a vítima- no caso em tela uma menina de 10 anos- submeteu-se de jeito trágico e indefensável.

2. Diversos grupos, violando qualquer básico sentimento de bom senso esperado pelo teórico avanço social e civilizatório que tivemos durante séculos, estão defendendo que o procedimento abortivo não deveria ter sido realizado pois é crime e se opõe a "princípios" cristãos da defesa da vida humana previstos na Bíblia e na cultura sagrada. Diante disso, é importante fazer breve alusão ao quadro a que se encaixa tal coerente e necessário ajuizamento da Justiça Brasileira a qual, prontamente, autorizou a realização do procedimento médico da interrupção da gravidez forçada.

3. O aborto é legal no Brasil desde 1940, sendo esta modalidade tipificada no artigo 128 do Código Penal, parte especial, no Capítulo 1- Crimes contra a vida- excepcionalmente em dois casos: I- se não há outro meio de salvar a vida da gestante; e II- se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. 

4. O inciso II destaca o que a doutrina reiteradas vezes classifica como aborto sentimental ou humanitário, pois sua provocação é permitida desse modo por se tratar de gravidez indesejada decorrente de ato sexual forçado. Vale destacar que com o advento da Lei n. 12.015/2009, que deixou de fazer distinção entre crimes de estupro e atentado violento ao pudor, revogando este último e passando a chamar de estupro todo e qualquer ato sexual cometido com violência ou grave ameaça, deixou de ser necessário discutir a possibilidade de aborto legal quando a gravidez resultar de atentado violento ao pudor, já que este crime não mais existe como infração autônoma.

5.  Outro tipo não previsto no Código Penal (1940) é em caso de anencefalia. O Plenário do STF, em abril de 2012, julgou procedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores de Saúde (CNTS), a fim de declarar a constitucionalidade da interrupção da gravidez nos casos de gestação de feto anencéfalo. Tal conduta, portanto, foi considerada atípica e independe de autorização judicial, bastando a concordância da gestante. 

6. As modalidades da forma criminosa estão previstas do artigo 124 a 127 do mesmo Código anteriormente citado, que variam com pena de detenção e reclusão de um ano a dez anos a depender do tipo, podendo aumentar hajam vista as causas de aumento da pena previstas no artigo 127.

7. Mesmo diante dessa legalidade existente há quase um século em nosso ordenamento jurídico pátrio, o assunto sempre retoma à proporções que excedem unicamente o aspecto do direito e encabeça a discussão envolvendo a defesa da vida a fim de cumprir mandamentos religiosos. 

8. O que mais me chama a atenção- e nesse texto não evito a pessoalidade dando ênfase à partículas apassivadoras, no entanto, redobro os esforços para conjugar o verbo na primeira pessoa- é o fato de em frente a esses bens jurídicos tutelados,- listo a  incolumidade física da criança, sua honra, saúde mental, emocional, identidade, o prejuízo de sua infância furtada, a desfiguração psicológica altamente precoce, e a vida do feto- a todo tempo, aquelas são preteridas em relação a essa.

9. Em nenhum momento defendo que a vida humana não tem valor. Não precisamos ser super inteligentes para notarmos que precisamos avançar cada vez mais no esforço e trabalho a fim de criarmos mecanismos de proteção e perpetuação de nossa espécie dia a dia mais eficientes mesmo considerando todas as diversidades existentes, sejam ideológicas, de crença, cor, credo, língua, etnia, etc. E, assim, expandirmos e otimizarmos métodos que valorizem a dignidade humana e que possibilitem o amplo acesso à condições melhores de sobrevivência, que são a causa do efeito da manutenção da vida. 

10. Porém, no caso aqui particularíssimo, estamos falando de uma criança de 10 anos. Sim, 10 anos! 

11. Defender a vida do feto sem se considerar o que a própria previsão legal taxativamente garante- sua remoção- fazendo descaso e vistas grossas para a vítima do abuso sexual e as consequências inevitáveis que a sua concepção trariam irremediavelmente, simplesmente porque é necessário obrigatoriamente se apegar à informações sobre o que Deus iria querer como dono da vida, sendo o único detentor do direito de tirá-la ou dá-la, é no mínimo demonstrar mal entendimento completo dos valores centrais da capacidade humana de criar conceitos morais e éticos que excedam os já em muito superados do passado. 

12. E esses mesmos que esbravejam baseados em achismos sagrados não se propõem a, por exemplo, centralizarem esforços para que políticas públicas de defesa da criança e do adolescente sejam mais eficientes. Protestar em frente a um hospital não se enquadra nesse tipo de modalidade a qual me refiro. Não tenho dúvida que parte daqueles histéricos defensores dos ditos "valores morais" sequer permutam o lazer e gastos diários consigo e familiares próximos a favor de crianças carentes, órfãos, abandonados, idosos, viúvas, doentes, carentes, necessitados e tantos outros que precisam diuturnamente de amparo. 

13. Ao mesmo tempo que afirmam que a menina e seus responsáveis legais são "assassinos"- sim, pasmem-se!, há quem afirme, inclusive Silas Malafaia indiretamente; aquele cidadão agressivo e gritador que se diz pastor, que pede para seus fiéis separarem um dos aluguéis e depositarem em sua conta corrente em "prol da obra de Deus"-, sequer se propuseram a oferecer amparo, carinho, amor, recursos, cuidados, força, dinheiro, ajuda de qualquer modo para quem realmente está sofrendo todo o prejuízo dessa exposição. Quem fez foi o Felipe Neto- sim, ele mesmo; aquele a qual, conforme os conservadores, é um esquerdista maligno- propondo custear a educação completa da garota até a formação no curso superior e outros gastos.

14. Isso seria hipocrisia? Seria uma maneira de publicamente deixar claro que, mesmo se intitulando cristãos, indivíduos assim não entenderam absolutamente o mínimo da mensagem de seu próprio mestre?

- Seriam as palavras de Jesus, de que "os pobres sempre estariam entre nós", uma premonição de que seus seguidores nunca possuiriam capacidade de se conscientizarem a favor de quem sofre a ponto de não compartilharem material e objetivamente o problema do outro? 

- Onde está a compaixão, o amor, o sentimento de sofrer com os que sofrem, chorar com os que choram, consolar os que precisam de consolo? 

- Cadê essa retórica farisaica que aos domingos troca abraços e choros entre pares mas na segunda exige de uma criança a concepção simplesmente para ter o sentimento de dever cumprido diante de seu Deus em defesa de um moralismo descabido, insuficiente, nojento, desconectado da realidade do embate e da sistemática dos problemas cotidianos humanos?

- Até quando esse tipo de gente vai chamar o outro de "alma" e se esquecerá  que se trata de pessoas vestidas de corpo, que sangram, sentem fome, sede, frio, adoecem, choram?

15. Enfim, não há realmente como dimensionarmos até que ponto a fé cega e desprovida de razão chega e alimenta uma práxis sobremaneira distanciada do que é proposta na teoria, alienando pessoas das mazelas do mundo real, que é exigente, despende energia diária, trabalho, esforço, suor, caso na prática queira ser feita alguma coisa.

André Francisco   

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Nuvem de Gafanhotos



1. "Nuvem de gafanhotos confirma os sinais do apocalipse joânico".

2. Uma proposição é uma oração declarativa que pode ser valorada como verdadeira ou falsa (nunca ao mesmo tempo) e divide-se em simples e composta.

3. No caso acima, evidencia-se uma simples, pois distinguem-se a partir do uso ou não de conectivos tais como: conjunção, disjunção inclusiva, disjunção exclusiva, condicional e bicondicional; e, ou- ou..., ou...-, se... então..., e "...se e somente se..." respectivamente.

4. Em tese, objetiva apresentar uma afirmação qualquer de verdade ou falsidade em determinada declaração, delimitando, no ínterim da busca do observador- que estará munido de duas simples principais metodologias lógicas a serem destacadas aqui, as quais extrapolam simplesmente a proposição- a observação  apenas a fim de guiar às próprias conexões e simbologias oferecidas estritamente pela significação dos termos.

5. O método dedutivo é a modalidade do raciocínio lógico que utiliza a dedução estrita para concluir determinadas premissas. Apresenta, normalmente, conclusões consideradas verdadeiras baseadas em princípios também reconhecidos da mesma forma (os maiores), relacionados diretamente a uma proposição (menor) para, a começar desse contato, propor a finalidade  teleológica.

6. Por outro lado, o método indutivo considera um número suficiente de casos particulares e, com base neles, conclui uma verdade geral. Baseia-se, a priori, na experiência empírica, sensível. Faz uso, de maneira complementar, de inferências Estatísticas e Matemáticas, obtendo uma enumeração de dados suficiente para permitir a passagem da afirmação particular para a mais ampla. Em outras palavras, finaliza o raciocínio na hipótese de que o comportamento de alguns seja provavelmente o resultado para muitos.

7. Normalmente, para se "validar" a proposição da primeira frase usa-se a dedução. É mais abrangente e não se dispõe ao trabalho de sistematizar muitos casos diversos a fim de se inferir conclusão destarte como pelo método indutivo. É um raciocínio, talvez, mais simples e rápido.

8. Deduzindo:

1) há textos sobre gafanhotos joânicos em época apocalíptica;
2) há gafanhotos aparecendo em lugares nunca visitados; logo
3) há verdade na predição joânica apocalíptica e a vivemos.

10. Induzindo:

1) há textos sobre gafanhotos em Gênesis, Escritos, Profetas, Evangelhos, Apocalipses, apócrifos, literaturas de povos diversos orientais, ocidentais, religiosos ou não;

2) há gafanhotos vindo de todas as partes desde sempre há milênios, sazonalmente, de diferentes formas, causando danos ou não danos variados; logo

3) não é verdade que casos de agora se relacionem absoluta e conclusivamente com a predição joânica apocalíptica.


11. Parte da maioria dos raciocínios lógicos voltados à afirmações de profecias e textos antigos são de caráter dedutivo conclusivos, a depender do cálculo determinadas taxas de variância, utilizando-se determinados conjuntos amostrais de população Estatística, sem qualquer critério técnico metodológico, no entanto, apenas alusões generalizantes de inferência sem respeitar determinados limites impostos pela própria definição do processo.

12. Diante disso, quando filtradas vis-à-vis à crítica básica de procedimentos  simples e exaustivamente trabalhados em outro tempo, não se sustentam de qualquer forma.

André Francisco


segunda-feira, 13 de abril de 2020

Culto online e o fracasso da Reforma Protestante


Lutero bipolar - primeiro defende os judeus, depois os amaldiçoa



1. Tradicionalmente- ainda que, quando analisados pormenores históricos políticos mais aprofundados, discorde-se, Martinho Lutero cravou as 95 teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg com a ideia de que as indulgências papais e outros dogmas da Igreja Católica Romana estavam equivocados ao serem comparados ao conteúdo das Sagradas Escrituras. 

2. As indulgências funcionavam como um pedágio para o fiel obter a graça redentora do Cristo. Um valor era dado à igreja, através de seus santos padres, para que nomes fossem aceitos no céu após a morte, como também pecados perdoados na terra. 

3. Lutero discordava disso e acreditava que todas as pessoas poderiam acessar diretamente às benesses divinas sem precisar depositar qualquer valor monetário nos cofres da Igreja. Na visão do reformador, havia um caminho desinstitucionalizado entre a humanidade e Deus, garantido na morte e ressurreição de Jesus 1500 anos antes. O papel da instituição religiosa era secundário, apenas sendo uma representação de comunhão e fraternidade entre os cristãos e não um meio necessário sem a qual ninguém poderia se chegar ao Salvador.

4. Logicamente a Igreja Católica discordou do posicionamento revolucionário do monge agostiniano rebelde e o excomungou. Apadrinhado pela nobreza Alemã e pela vontade política do Estado de se libertar da soberania institucional do clero da Itália, conseguiu dar início ao que ficou conhecido como Reforma Protestante e Igreja Luterana, epicentro do movimento que cisou a cristandade até os dias atuais em proporções jamais vistas. 

5. Mas qual a relação de Lutero com culto online?

6. A ideia da reforma luterana inicialmente foi a de romper por completo com a absurda dependência a qual a Igreja Romana, ao longo de milênios, criou teológica, litúrgica e culturalmente entre seus ritos e estrutura em relação a seus membros. As indulgências e disputas políticas dos estados soberanos incipientes foram simplesmente a "gota d'água" como se conhece em livros de história da igreja. Não havia liberdade para que uma pessoa comum fizesse qualquer esforço para se chegar espiritualmente a Deus sem passar pelos mecanismos da tradição romana.

7. Um cenário de institucionalização total da fé em torno dos dogmas e tradições e liturgias que proporcionavam o único modus de expressar a vivência cristã. Lutero discordava disso assim como outros antecessores na reforma: Wyclif, Hus, Tyndale, etc. 

8. (Caso queira se inteirar sobre a Reforma Protestante leia alguns livros de história da igreja).

9. Atualmente, as igrejas que representam a Reforma proposta nas 95 teses são tradicionalmente conhecidas como evangélicas. Diante do cenário mundial que se vive, na epidemia do coronavírus, diversos seguimentos resolveram usar a tecnologia a seu favor, criando o que se popularizou como "culto online" ou "live", em que as pessoas são convidadas a se conectarem em rede social (normalmente Facebook ou Instagram), para acompanharem alguma coisa que se parece como um devocional televisionado. 

10. A fim de se evitar aglomeração, normalmente o Pastor da Igreja, junto de poucas pessoas ou sozinho, inicia a liturgia com o mesmo rito já praticado em dias normais: hinos, leitura devocional da Bíblia, orações e pregação. Os telespectadores acompanham a apresentação e teoricamente se conectam a Deus de alguma forma intermediada pelo templo. A pergunta que se faz é: há necessidade dessa intermediação para se cultuar? A Reforma Protestante do passado não combatia necessária e diretamente essa conexão entre fiel, templo e sagrado? O que justifica o membro cristão, que participa todos os dias por anos de seus ritos do templo, conectar-se à distância com a centralização do espaço sagrado para se sentir alcançado pela graça?

11. Talvez o movimento protestante atual tenha se transmudado daquilo que havia sido inicialmente em sua propositura. A institucionalização do sagrado já não é apenas fetiche da Igreja Romana há mais de 500 anos. Grande parte das igrejas evangélicas também se adaptaram a essa manutenção do sagrado dentro de si, objetivando oferecer um produto/resultado da espiritualização de seus próprios mecanismos, inclusive a sua estrutura eclesiástica e a eucaristia (santa ceia).

12. Obviamente que existe a possibilidade de se usarem justificativas neotestamentárias ou Bíblicas para esse tipo de modernização, assim como, a meu ver, para qualquer coisa que seja possível imaginar em uma mente humana (não é o caso aqui discorrer sobre a alegorização textual da Bíblia maquiada em interpretação espiritual), mas partindo de um ideário comum, apresentado por uma visão tradicional e conservadora dos textos mais básicos da hermenêutica cristã e, a partir de uma visão teológica protestante geral, visualiza-se facilmente a reprodução daquilo que o próprio movimento já combateu; não simplesmente como um dos pontos de disputa interpretativa histórico, porém, seu principal. 

13. Diante disso, observando sempre de fora, é possível notar a diversidade de manifestações do movimento religioso a partir das necessidades contextuais e locais a que se subordinam. A adequação rotineira, combustível de sustentação de praticamente todas as formas de espiritualidade humana, às mudanças do cotidiano. 


André Francisco

quinta-feira, 19 de março de 2020

Do lugar dos deuses na pandemia (coronavírus)



1. Parafraseando anacronicamente Marx, a história da humanidade é uma história de luta pela sobrevivência. Nada mais lógica essa afirmação, obviamente porque se refere a seres vivos assim como tantos demais que conhecemos, por enquanto, na terra. E, pelo que se pode inferir, manter-se em vida faz parte do jogo a praticamente todo custo. 

2. Todo custo no sentido de que sempre apelamos para os mais diversos recursos disponíveis a fim de confrontarmos a ideia assustadora de que, um dia, inevitavelmente, deixaremos de existir. Talvez mais "assustadora" para alguns que não conseguiram (ou não quiseram) aceitar a prova natural de que a morte nada mais é do que o momento em que nossas consciências, corpos ou qualquer coisa do estado subjetivo do nosso ego voltará à condição anterior ao próprio nascimento. Ou seja, a da não existência. Tentando exemplificar, nutrindo-me com um pouco de existencialismo, poderia aprofundar a ideia e considerar o retorno não ao nascimento biológico em si, porém àquela condição que costumo chamar de última memória lúcida. Um exercício mental prático deixa bem ilustrada essa definição de maneira retórica: onde eu estava antes da última memória que tenho conscientemente de mim mesmo? Se a análise for feita honestamente e não se apelar para fotografias ou filmagens e logicamente para a realidade física externa de se estar em algum ponto naquele momento, possivelmente, a resposta será lugar nenhum. Nesse contexto, é importante comentar que tudo funcionava perfeitamente e dentro dos padrões naturais do universo independentemente de consciências humanas pontuais. Enfim- pois a ideia aqui não é discutir a filosofia da coisa existencial-, somos mais um ou menos um.

3. Voltando à questão dos recursos destaco a hipótese da vida após a morte e dos deuses. É extremamente confortável diante do cenário amedrontador da realidade biológica e novidade do pós-morte a suspeita de que viveremos para sempre. Tanto na religião quanto na ciência percebemos que muita força de trabalho é aplicada na tentativa de gerar a maior longevidade possível das pessoas humanas. A primeira apela para a abstrata mentalização do mundo metafísico e suas características a depender dos pormenores e diversidades doutrinárias e metodologicamente formadas ao redor do mundo. Simplificando, depende da maneira com a qual cada tradição religiosa lida com o tema. Varia local e estruturalmente de acordo com a ideia que se tem de seu estabelecimento e prática cúltica. Exemplo, o tema é tratado diferentemente entre um hindu e um judeu ortodoxo, ou Católico Romano e Aborígenes Australianos. O céu protestante faz sentido para os protestantes, mas para tribos indígenas isoladas a hipótese desse local se identifica melhor com a nascente de um rio que passa por perto, como os Pirarrãs. O Ragnarok Nórdico sensibilizou diversos povos por longos períodos de tempo, mas não convenceu suficientemente os cristãos conquistadores de suas terras. Pois bem, mesmo diante de algumas divergências pontuais a ideia é que sempre há similaridade no sentido final da explicação metafísica, a de que, para se ter algum sentido na vida humana, é necessário viver para sempre. 

4. Do outro lado, os deuses, talvez conectadamente com a primeira hipótese- excetuando-se aqui alguns seguimentos que não necessariamente acreditam na existência de seres governadores (budismo)-, são a abstração de especial destaque da história humana a qual é possível se conhecer documentalmente. Desde os primórdios da comunicação escrita ou rupestre, é notória a capacidade que temos em criar determinadas figuras com o objetivo de representar algum símbolo imagético superior. Esse objeto iconolátrico normalmente carrega o sentido de preenchimento de lacunas do conhecimento. Uma rápida observação das tradições religiosas mais antigas garante tal afirmação, pois sempre que qualquer coisa que superasse a expectativa ou nível observacional disponíveis à época em destaque, criando-se uma lacuna irreparável entre a explicação comum e o dado novo, fazia-se necessário atribuir à entidades divinas tais tamanhas façanhas e sempre a se especular o motivo coerentemente com alguma situação social ou de sentido adjungido a grupos humanos. O que se quer dizer é que a falta de conhecimento- seguindo a epistemologia moderna- para explicar acontecimentos novos, notoriamente os que fugiam da capacidade técnica e teórica desses povos, desaguavam na metodologia da cosmovisão mítico-religiosa.

5. Seguindo esse ideário mítico, político e religioso, as civilizações dispunham de respostas técnicas fundamentadas sempre na especulação metafísica abstrata com pouquíssimos lampejos de exceção. É fácil perceber essa referência, por exemplo, através de uma análise aprofundada de cosmogonias antigas como dos Sumérios, Fenícios, Egípcios, Orientais. Adiante ao quadro cronológico os Mesopotâmicos, Hebreus, Babilônicos, Persas, Gregos, Romanos, Nórdicos entre outros. 

6. Interessante de se observar é que normalmente esses textos não tratavam apenas de questões relacionadas ao pós-morte, mas minimizavam os efeitos de catástrofes e problemas de saúde generalizados. Textos do médio oriente e consequentemente dos hebreus- que beberam dessas fontes- classificavam em várias frentes os problemas relacionados com as enchentes esporádicas comuns à região alagada do entre rios. Desse tipo de alusão nasceram distintas narrativas de Dilúvios mundiais, sempre salientando apenas a área conhecida até então como porção habitada. O mito de Enuma Elish, a Epopeia de Gilgamesh e de Atrahasis, O Mito de Noé hebreu são destaques de narrativas camponesas dessas calamidades de fenômenos da natureza. As disputas entre Marduk e Tiamat para a criação do cosmos representavam na mitologia mesopotâmica a fundação das estruturas do universo e também o lado positivo e negativo de todas as coisas, inclusive doenças e curas. A narrativa hebreia da saída do povo do Egito sob a praga da enfermidade que devastou parte da população egípcia indica a atuação de YHWH diretamente na produção do mal necessário para o resultado vencedor de seu povo até então escravizado. Claro que redobra a importância de classificarmos esses dados apenas como mitológicos pois a responsabilidade de sua formação ficou, como se conhece, nas mãos de seguimentos religiosos elitizados e estruturalmente formados muito tempo depois do teórico período de historicidade em que não literalmente ocorreram. 

7. Há quem relacione  problemas graves de saúde e fome no continente africano com o mito da marca de Caim previsto na literatura hebreia do Bereshit (Gênesis), em que há uma maldição de YHWH sobre esse personagem a qual, nessa visão, habitou o continente após fugir e sequencialmente disseminou em seus descendentes a praga instaurada divinamente. 

8. Nesse cenário sucintamente supracitado, fatalmente se nota a perambulação da ideia abstrata do divino a lidar com situações reais e naturais do dia a dia do mundo antigo. Atualmente não é diferente. Segue-se a metodologia mítica para se atribuir a seres superiores toda a estrutura pragmática do jogo da vida; a maneira com que se maneja a imaginação depende do seguimento de fé e credo das comunidades ou individuais. Grande parte dos fieis cristãos, por exemplo, assimila o adestramento de que há um controle rigoroso de YHWH diante de qualquer caso factual que se possa existir. Seja para o bem da espécie ou para o mal, o soberano mantém essa característica dogmática de saber e controlar tudo e aposta nos resultados naturais de sua própria criação apenas atuando pontualmente quando quer com benesses e, lado a lado, eximindo-se da culpa dos males inevitáveis. Atua ao assumir tal posição emancipada, praticamente- em se tratando da teologia da crise moderna-, classificasse como o "totalmente outro" de Karl Barth. Nessa visão religiosa o ser supremo lidera os eventos de longe e de perto ao mesmo tempo, sempre na esteira de sua vontade ou bel prazer. O momento ativo da dinâmica de contato da deidade com humanos é objetiva no mundo real e completamente dependente da forma a que estes inatamente entendem em suas micro-realidades e interações. Ou seja, a conclusão óbvia que se chega é que só há possibilidade de perceber deus atuando quando atribuímos a nossa pequena parte de realidade as teorias que já temos em mente sobre Ele e que, corriqueiramente, recebemos por tradição através do meio de inserção, cultura, sociedade.  

9. Na pandemia, na doença, no tsunami, nas guerras, nos conflitos do dia a dia, na morte, na vida, no emprego, no desemprego, na tristeza, na alegria, no prazer, no desprazer, na bonança, na falta, na riqueza ou pobreza, enfim, na sobrevivência humana, no jogo de ações e reações internas e externas ao ego, a abstração da ajuda do alto surte efeito para cada mente que se apropria de seu conjunto de informações e carece diretamente desse "ópio" mental para se sentir melhor- no subjetivo- ou ver o melhor e pior- objetivamente. É oportuno separar em duas maneiras as lentes da capacidade interpretativa e observacional da realidade que dispomos, subjetiva e objetiva, para criarmos uma distinção importante na análise. Em referência direta à subjetividade, normalmente, o enquadramento do mito produz efeito de se sentir parte de um todo coerente, lógico, de proteção e paz interior. O todo custo da sobrevivência depende do bem estar do indivíduo em si mesmo, do equilíbrio emocional e afetivo diante das situações de infinitas problemáticas do existir. Os deuses se encaixam muito bem nesse diapasão. No outro lado, o da objetividade, o lugar dos supremos na mente do homem notador está mais voltado ao controle externo e decisão em última instância de casos as quais superam suas capacidades. Em melhores palavras, tudo que acontece ao redor deve ter um porquê e, na abstração, esse porquê não está à deriva do acaso, no entanto, no croqui do controle divino. Como se a realidade fosse um arquitetura previsível e programa não por si mesma e suas regras físicas, mas que depende a todo custo da manutenção de quem a produziu. 

10. Não há mais espaço.


11. Um breve conclusão. Sobreviver é instintivo e é aspiração de todas as espécies vivas catalogadas. Para que isso aconteça precisam se valer tanto de ferramentas físicas como de abstratas (essas mesmas). No segundo caso encaixam-se as mais evidenciadas na história no aspecto religioso, a ideia da vida eterna e da realidade dos deuses. A depender do seguimento cúltico e da doutrina produz-se determinada concepção do pós-morte como também da comunicação das entidades supremas. Normalmente se apela para esses dois vieses para satisfazer lacunas existenciais que surgem com descontroles naturais como catástrofes, pandemias e outros. Diante do momento em que se passa a situação anormal surgem novas teorias míticas ou são reforçadas as que já existem. Quando a anormalidade se finda essas mesmas interpretações são usadas para analisar o passado breve e tentar dar um sentido maior para todos os acontecimentos e, no caso humano, sempre centralizando e comunicando as informações, motivos, fatos e dados dos ocorridos com o sentido do próprio existir.

André Francisco

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Miqueias: da superioridade utópica de Jerusalém na fonte deuteronomista

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1. Jerusalém, principalmente após a divisão do reino em Israel e Judá, sempre teve um papel de protagonismo na redação deuteronomista da Bíblia Hebraica. Grande parte dos textos de clamor, sapienciais, de cânticos, litúrgicos, narrativos, oferecem respaldo a essa afirmação quando analisados de perto. 

2. A ênfase recai, sem dúvidas, no momentum de cativeiro Babilônico e pós- exílico moderno (583- 450 a.C). A sua destruição devida à invasão estrangeira e consequente deportação deixou na preleção dos profetas posteriores e sacerdotes redatores a confirmação da mensagem de libertação, restauração e reedificação. 

3. Podemos também situar nesse contexto o crescimento de correntes teológicas que defendiam a reafirmação do reinado da família davídica e consequentemente a criação da figura do Messias libertador posterior (fortalecida sobremaneira após a reconstrução de Neemias e cotejo com ideais Persas). 

4. Jerusalém e Sião, também por questões geográficas, por ter sido a sede do Estado Uno e berço da espiritualidade sacerdotal com o Templo, ganha um lugar de destaque na centralização política desejada pelos reformadores pós-exílio. No texto de Miqueias evidencia-se esse aspecto nas mensagens de clamor utópico por Jerusalém reformada em que, diferente da situação escravagista no estrangeiro, garantiria a justiça, paz social e igualdade entre os que temem a Javé. 

5. Fruto do esforço dos redatores, verifica-se semelhança com o Terceiro Isaías na Sião utópica e centralização de todas as nações, povos e governos alienígenas na adoração ao Único Javé no templo reformado. A superioridade teológica das fontes sacerdotais no momentum pós Babilônia reforçaram esse aspecto de Jerusalém em destaque e Samaria, antiga capital de Israel, entregue aos ídolos e destruída. 

6. Nas cronologias dos reis- documentos que sofreram revisão teológica dos deutoronomistas pós-exílicos na traditiva oficial- vê-se essa diferença "histórica" no paganismo de Samaria e santidade de Sião, oficializando pelo apelo interpretativo  a verdadeira localização da espiritualidade dos hebreus os quais tiveram contato com a reestruturação do estado em 500 a.C. O momento apelativo de Neemias 8 e o "achamento" do livro da lei (provavelmente o Livro de Deuteronômio e a leitura monoteísta/ persa da teologia sagrada) lido por Esdras em Jerusalém reconstruída pelos Persas destaca também a teórica consolidação das promessas anteriormente feitas sobre a supremacia e glória da antiga capital. 

André Francisco











Miqueias: das perícopes contraditórias





1. A Bíblia Hebraica é composta de diversos textos escritos em épocas diferentes. Muitas vezes reunidos sob uma autoridade autorial profética, sacerdotal ou de família real. O livro de Miqueias não é exceção. 

2. Percebe-se a reunião de diferentes perícopes sob a autoridade do nome do profeta antigo, mas que evidenciam linguagem e assunto heterogêneos no processo da pesquisa de datação, facilitando assim afirmações relacionadas a não autoria única de todo o conteúdo. Cada momento teológico abordado representa conjuntamente uma disputa social e política evidente. O crescimento do Império Assírio e a iminente invasão a Israel em 722 a.C, o cativeiro Babilônico e promessas da reestruturação utópica de Judá e Sião por volta de 583 a.C, como também possíveis observações rápidas de períodos após o poderio militar e imperialista Mesopotâmico. 

3. Também se destacam as mãos dos redatores deutoronomistas construindo o viés teológico da libertação, soberania e reconstrução de Judá diante das nações muito tempo depois dos acontecimentos marcantes da história hebreia do sexto século a.C, garantindo a eficiente ideologia do controle e manutenção de Javé a seu povo mesmo em situação de cativos de nações estrangeiras. Há de se destacar que a maior parte da história do livro retrata momentos de conflitos entre Israel e Assíria, política militarizada de Ezequias e a crítica dos camponeses diante da exploração tributária da corte para a manutenção das investidas bélicas. 

4. A vontade de Javé e sua palavra mostra-se evidentemente a depender do ponto de vista e da função social do autor. No caso relatado nos textos da narrativa de 722 a.C, a defesa é que a solidariedade e bondade da elite do Estado ampare o pobre do campo e não o explore com cobranças que visem sustentar a política nacional de defesa. Em referência aos profetas do palácio, a palavra de Javé se traduz na defesa das intenções do Rei em defender a nação a partir da construção de muros e investimento pesado na área militar. Essa diversificação de ideias na boca dos profetas, a depender da classe social e visão política, torna-se evidente nessa disputa de intenções divinas para a afirmação ou não do conteúdo sagrado da revelação enquanto orientação espiritual.

5. Miqueias, o profeta, em sua breve participação real do livro que possui seu nome, defende a melhor repartição das arrecadações dos tributos e desincentiva a majoração das cargas as quais refletem diretamente na qualidade de vida do campo. Pelo contrário, os sacerdotes e a classe de videntes palacianos aprovam tais medidas e traduzem a política de Ezequias como sendo a melhor até então vista em Israel. Essa sobrevalorização é mostrada na narração de sua "biografia teológica" em grande parte do Livro do Primeiro Isaías e também em Reis, tratando-o como um dos melhores reis de Israel e mais fiéis as palavras de Javé.

6. Aqui destaca-se esse fator social e político importante na interpretação e observação de dados históricos relatados em diversas partes da Bíblia Hebraica os quais se mostram altamente importantes a serem considerados em uma exegese técnica, mesmo que em seu próprio conteúdo fique explicitada contradição óbvia entre um viés e outro. 

André Francisco









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