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quarta-feira, 19 de agosto de 2020

O aborto legal e o moralismo religioso

 

 

 

1. É realmente inacreditável a maneira como determinadas pessoas conseguem opinar ou tratar assuntos moral, humana, ética, jurídica, política, socialmente sensíveis, buscando única e exclusivamente viabilizar a defesa de afirmações ideológicas pessoais, baseadas em dogmas e doutrinas religiosas antigas, sem considerar em nenhum momento o fato concreto a que, fatalmente, a vítima- no caso em tela uma menina de 10 anos- submeteu-se de jeito trágico e indefensável.

2. Diversos grupos, violando qualquer básico sentimento de bom senso esperado pelo teórico avanço social e civilizatório que tivemos durante séculos, estão defendendo que o procedimento abortivo não deveria ter sido realizado pois é crime e se opõe a "princípios" cristãos da defesa da vida humana previstos na Bíblia e na cultura sagrada. Diante disso, é importante fazer breve alusão ao quadro a que se encaixa tal coerente e necessário ajuizamento da Justiça Brasileira a qual, prontamente, autorizou a realização do procedimento médico da interrupção da gravidez forçada.

3. O aborto é legal no Brasil desde 1940, sendo esta modalidade tipificada no artigo 128 do Código Penal, parte especial, no Capítulo 1- Crimes contra a vida- excepcionalmente em dois casos: I- se não há outro meio de salvar a vida da gestante; e II- se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. 

4. O inciso II destaca o que a doutrina reiteradas vezes classifica como aborto sentimental ou humanitário, pois sua provocação é permitida desse modo por se tratar de gravidez indesejada decorrente de ato sexual forçado. Vale destacar que com o advento da Lei n. 12.015/2009, que deixou de fazer distinção entre crimes de estupro e atentado violento ao pudor, revogando este último e passando a chamar de estupro todo e qualquer ato sexual cometido com violência ou grave ameaça, deixou de ser necessário discutir a possibilidade de aborto legal quando a gravidez resultar de atentado violento ao pudor, já que este crime não mais existe como infração autônoma.

5.  Outro tipo não previsto no Código Penal (1940) é em caso de anencefalia. O Plenário do STF, em abril de 2012, julgou procedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores de Saúde (CNTS), a fim de declarar a constitucionalidade da interrupção da gravidez nos casos de gestação de feto anencéfalo. Tal conduta, portanto, foi considerada atípica e independe de autorização judicial, bastando a concordância da gestante. 

6. As modalidades da forma criminosa estão previstas do artigo 124 a 127 do mesmo Código anteriormente citado, que variam com pena de detenção e reclusão de um ano a dez anos a depender do tipo, podendo aumentar hajam vista as causas de aumento da pena previstas no artigo 127.

7. Mesmo diante dessa legalidade existente há quase um século em nosso ordenamento jurídico pátrio, o assunto sempre retoma à proporções que excedem unicamente o aspecto do direito e encabeça a discussão envolvendo a defesa da vida a fim de cumprir mandamentos religiosos. 

8. O que mais me chama a atenção- e nesse texto não evito a pessoalidade dando ênfase à partículas apassivadoras, no entanto, redobro os esforços para conjugar o verbo na primeira pessoa- é o fato de em frente a esses bens jurídicos tutelados,- listo a  incolumidade física da criança, sua honra, saúde mental, emocional, identidade, o prejuízo de sua infância furtada, a desfiguração psicológica altamente precoce, e a vida do feto- a todo tempo, aquelas são preteridas em relação a essa.

9. Em nenhum momento defendo que a vida humana não tem valor. Não precisamos ser super inteligentes para notarmos que precisamos avançar cada vez mais no esforço e trabalho a fim de criarmos mecanismos de proteção e perpetuação de nossa espécie dia a dia mais eficientes mesmo considerando todas as diversidades existentes, sejam ideológicas, de crença, cor, credo, língua, etnia, etc. E, assim, expandirmos e otimizarmos métodos que valorizem a dignidade humana e que possibilitem o amplo acesso à condições melhores de sobrevivência, que são a causa do efeito da manutenção da vida. 

10. Porém, no caso aqui particularíssimo, estamos falando de uma criança de 10 anos. Sim, 10 anos! 

11. Defender a vida do feto sem se considerar o que a própria previsão legal taxativamente garante- sua remoção- fazendo descaso e vistas grossas para a vítima do abuso sexual e as consequências inevitáveis que a sua concepção trariam irremediavelmente, simplesmente porque é necessário obrigatoriamente se apegar à informações sobre o que Deus iria querer como dono da vida, sendo o único detentor do direito de tirá-la ou dá-la, é no mínimo demonstrar mal entendimento completo dos valores centrais da capacidade humana de criar conceitos morais e éticos que excedam os já em muito superados do passado. 

12. E esses mesmos que esbravejam baseados em achismos sagrados não se propõem a, por exemplo, centralizarem esforços para que políticas públicas de defesa da criança e do adolescente sejam mais eficientes. Protestar em frente a um hospital não se enquadra nesse tipo de modalidade a qual me refiro. Não tenho dúvida que parte daqueles histéricos defensores dos ditos "valores morais" sequer permutam o lazer e gastos diários consigo e familiares próximos a favor de crianças carentes, órfãos, abandonados, idosos, viúvas, doentes, carentes, necessitados e tantos outros que precisam diuturnamente de amparo. 

13. Ao mesmo tempo que afirmam que a menina e seus responsáveis legais são "assassinos"- sim, pasmem-se!, há quem afirme, inclusive Silas Malafaia indiretamente; aquele cidadão agressivo e gritador que se diz pastor, que pede para seus fiéis separarem um dos aluguéis e depositarem em sua conta corrente em "prol da obra de Deus"-, sequer se propuseram a oferecer amparo, carinho, amor, recursos, cuidados, força, dinheiro, ajuda de qualquer modo para quem realmente está sofrendo todo o prejuízo dessa exposição. Quem fez foi o Felipe Neto- sim, ele mesmo; aquele a qual, conforme os conservadores, é um esquerdista maligno- propondo custear a educação completa da garota até a formação no curso superior e outros gastos.

14. Isso seria hipocrisia? Seria uma maneira de publicamente deixar claro que, mesmo se intitulando cristãos, indivíduos assim não entenderam absolutamente o mínimo da mensagem de seu próprio mestre?

- Seriam as palavras de Jesus, de que "os pobres sempre estariam entre nós", uma premonição de que seus seguidores nunca possuiriam capacidade de se conscientizarem a favor de quem sofre a ponto de não compartilharem material e objetivamente o problema do outro? 

- Onde está a compaixão, o amor, o sentimento de sofrer com os que sofrem, chorar com os que choram, consolar os que precisam de consolo? 

- Cadê essa retórica farisaica que aos domingos troca abraços e choros entre pares mas na segunda exige de uma criança a concepção simplesmente para ter o sentimento de dever cumprido diante de seu Deus em defesa de um moralismo descabido, insuficiente, nojento, desconectado da realidade do embate e da sistemática dos problemas cotidianos humanos?

- Até quando esse tipo de gente vai chamar o outro de "alma" e se esquecerá  que se trata de pessoas vestidas de corpo, que sangram, sentem fome, sede, frio, adoecem, choram?

15. Enfim, não há realmente como dimensionarmos até que ponto a fé cega e desprovida de razão chega e alimenta uma práxis sobremaneira distanciada do que é proposta na teoria, alienando pessoas das mazelas do mundo real, que é exigente, despende energia diária, trabalho, esforço, suor, caso na prática queira ser feita alguma coisa.

André Francisco   

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