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quinta-feira, 19 de março de 2020

Do lugar dos deuses na pandemia (coronavírus)



1. Parafraseando anacronicamente Marx, a história da humanidade é uma história de luta pela sobrevivência. Nada mais lógica essa afirmação, obviamente porque se refere a seres vivos assim como tantos demais que conhecemos, por enquanto, na terra. E, pelo que se pode inferir, manter-se em vida faz parte do jogo a praticamente todo custo. 

2. Todo custo no sentido de que sempre apelamos para os mais diversos recursos disponíveis a fim de confrontarmos a ideia assustadora de que, um dia, inevitavelmente, deixaremos de existir. Talvez mais "assustadora" para alguns que não conseguiram (ou não quiseram) aceitar a prova natural de que a morte nada mais é do que o momento em que nossas consciências, corpos ou qualquer coisa do estado subjetivo do nosso ego voltará à condição anterior ao próprio nascimento. Ou seja, a da não existência. Tentando exemplificar, nutrindo-me com um pouco de existencialismo, poderia aprofundar a ideia e considerar o retorno não ao nascimento biológico em si, porém àquela condição que costumo chamar de última memória lúcida. Um exercício mental prático deixa bem ilustrada essa definição de maneira retórica: onde eu estava antes da última memória que tenho conscientemente de mim mesmo? Se a análise for feita honestamente e não se apelar para fotografias ou filmagens e logicamente para a realidade física externa de se estar em algum ponto naquele momento, possivelmente, a resposta será lugar nenhum. Nesse contexto, é importante comentar que tudo funcionava perfeitamente e dentro dos padrões naturais do universo independentemente de consciências humanas pontuais. Enfim- pois a ideia aqui não é discutir a filosofia da coisa existencial-, somos mais um ou menos um.

3. Voltando à questão dos recursos destaco a hipótese da vida após a morte e dos deuses. É extremamente confortável diante do cenário amedrontador da realidade biológica e novidade do pós-morte a suspeita de que viveremos para sempre. Tanto na religião quanto na ciência percebemos que muita força de trabalho é aplicada na tentativa de gerar a maior longevidade possível das pessoas humanas. A primeira apela para a abstrata mentalização do mundo metafísico e suas características a depender dos pormenores e diversidades doutrinárias e metodologicamente formadas ao redor do mundo. Simplificando, depende da maneira com a qual cada tradição religiosa lida com o tema. Varia local e estruturalmente de acordo com a ideia que se tem de seu estabelecimento e prática cúltica. Exemplo, o tema é tratado diferentemente entre um hindu e um judeu ortodoxo, ou Católico Romano e Aborígenes Australianos. O céu protestante faz sentido para os protestantes, mas para tribos indígenas isoladas a hipótese desse local se identifica melhor com a nascente de um rio que passa por perto, como os Pirarrãs. O Ragnarok Nórdico sensibilizou diversos povos por longos períodos de tempo, mas não convenceu suficientemente os cristãos conquistadores de suas terras. Pois bem, mesmo diante de algumas divergências pontuais a ideia é que sempre há similaridade no sentido final da explicação metafísica, a de que, para se ter algum sentido na vida humana, é necessário viver para sempre. 

4. Do outro lado, os deuses, talvez conectadamente com a primeira hipótese- excetuando-se aqui alguns seguimentos que não necessariamente acreditam na existência de seres governadores (budismo)-, são a abstração de especial destaque da história humana a qual é possível se conhecer documentalmente. Desde os primórdios da comunicação escrita ou rupestre, é notória a capacidade que temos em criar determinadas figuras com o objetivo de representar algum símbolo imagético superior. Esse objeto iconolátrico normalmente carrega o sentido de preenchimento de lacunas do conhecimento. Uma rápida observação das tradições religiosas mais antigas garante tal afirmação, pois sempre que qualquer coisa que superasse a expectativa ou nível observacional disponíveis à época em destaque, criando-se uma lacuna irreparável entre a explicação comum e o dado novo, fazia-se necessário atribuir à entidades divinas tais tamanhas façanhas e sempre a se especular o motivo coerentemente com alguma situação social ou de sentido adjungido a grupos humanos. O que se quer dizer é que a falta de conhecimento- seguindo a epistemologia moderna- para explicar acontecimentos novos, notoriamente os que fugiam da capacidade técnica e teórica desses povos, desaguavam na metodologia da cosmovisão mítico-religiosa.

5. Seguindo esse ideário mítico, político e religioso, as civilizações dispunham de respostas técnicas fundamentadas sempre na especulação metafísica abstrata com pouquíssimos lampejos de exceção. É fácil perceber essa referência, por exemplo, através de uma análise aprofundada de cosmogonias antigas como dos Sumérios, Fenícios, Egípcios, Orientais. Adiante ao quadro cronológico os Mesopotâmicos, Hebreus, Babilônicos, Persas, Gregos, Romanos, Nórdicos entre outros. 

6. Interessante de se observar é que normalmente esses textos não tratavam apenas de questões relacionadas ao pós-morte, mas minimizavam os efeitos de catástrofes e problemas de saúde generalizados. Textos do médio oriente e consequentemente dos hebreus- que beberam dessas fontes- classificavam em várias frentes os problemas relacionados com as enchentes esporádicas comuns à região alagada do entre rios. Desse tipo de alusão nasceram distintas narrativas de Dilúvios mundiais, sempre salientando apenas a área conhecida até então como porção habitada. O mito de Enuma Elish, a Epopeia de Gilgamesh e de Atrahasis, O Mito de Noé hebreu são destaques de narrativas camponesas dessas calamidades de fenômenos da natureza. As disputas entre Marduk e Tiamat para a criação do cosmos representavam na mitologia mesopotâmica a fundação das estruturas do universo e também o lado positivo e negativo de todas as coisas, inclusive doenças e curas. A narrativa hebreia da saída do povo do Egito sob a praga da enfermidade que devastou parte da população egípcia indica a atuação de YHWH diretamente na produção do mal necessário para o resultado vencedor de seu povo até então escravizado. Claro que redobra a importância de classificarmos esses dados apenas como mitológicos pois a responsabilidade de sua formação ficou, como se conhece, nas mãos de seguimentos religiosos elitizados e estruturalmente formados muito tempo depois do teórico período de historicidade em que não literalmente ocorreram. 

7. Há quem relacione  problemas graves de saúde e fome no continente africano com o mito da marca de Caim previsto na literatura hebreia do Bereshit (Gênesis), em que há uma maldição de YHWH sobre esse personagem a qual, nessa visão, habitou o continente após fugir e sequencialmente disseminou em seus descendentes a praga instaurada divinamente. 

8. Nesse cenário sucintamente supracitado, fatalmente se nota a perambulação da ideia abstrata do divino a lidar com situações reais e naturais do dia a dia do mundo antigo. Atualmente não é diferente. Segue-se a metodologia mítica para se atribuir a seres superiores toda a estrutura pragmática do jogo da vida; a maneira com que se maneja a imaginação depende do seguimento de fé e credo das comunidades ou individuais. Grande parte dos fieis cristãos, por exemplo, assimila o adestramento de que há um controle rigoroso de YHWH diante de qualquer caso factual que se possa existir. Seja para o bem da espécie ou para o mal, o soberano mantém essa característica dogmática de saber e controlar tudo e aposta nos resultados naturais de sua própria criação apenas atuando pontualmente quando quer com benesses e, lado a lado, eximindo-se da culpa dos males inevitáveis. Atua ao assumir tal posição emancipada, praticamente- em se tratando da teologia da crise moderna-, classificasse como o "totalmente outro" de Karl Barth. Nessa visão religiosa o ser supremo lidera os eventos de longe e de perto ao mesmo tempo, sempre na esteira de sua vontade ou bel prazer. O momento ativo da dinâmica de contato da deidade com humanos é objetiva no mundo real e completamente dependente da forma a que estes inatamente entendem em suas micro-realidades e interações. Ou seja, a conclusão óbvia que se chega é que só há possibilidade de perceber deus atuando quando atribuímos a nossa pequena parte de realidade as teorias que já temos em mente sobre Ele e que, corriqueiramente, recebemos por tradição através do meio de inserção, cultura, sociedade.  

9. Na pandemia, na doença, no tsunami, nas guerras, nos conflitos do dia a dia, na morte, na vida, no emprego, no desemprego, na tristeza, na alegria, no prazer, no desprazer, na bonança, na falta, na riqueza ou pobreza, enfim, na sobrevivência humana, no jogo de ações e reações internas e externas ao ego, a abstração da ajuda do alto surte efeito para cada mente que se apropria de seu conjunto de informações e carece diretamente desse "ópio" mental para se sentir melhor- no subjetivo- ou ver o melhor e pior- objetivamente. É oportuno separar em duas maneiras as lentes da capacidade interpretativa e observacional da realidade que dispomos, subjetiva e objetiva, para criarmos uma distinção importante na análise. Em referência direta à subjetividade, normalmente, o enquadramento do mito produz efeito de se sentir parte de um todo coerente, lógico, de proteção e paz interior. O todo custo da sobrevivência depende do bem estar do indivíduo em si mesmo, do equilíbrio emocional e afetivo diante das situações de infinitas problemáticas do existir. Os deuses se encaixam muito bem nesse diapasão. No outro lado, o da objetividade, o lugar dos supremos na mente do homem notador está mais voltado ao controle externo e decisão em última instância de casos as quais superam suas capacidades. Em melhores palavras, tudo que acontece ao redor deve ter um porquê e, na abstração, esse porquê não está à deriva do acaso, no entanto, no croqui do controle divino. Como se a realidade fosse um arquitetura previsível e programa não por si mesma e suas regras físicas, mas que depende a todo custo da manutenção de quem a produziu. 

10. Não há mais espaço.


11. Um breve conclusão. Sobreviver é instintivo e é aspiração de todas as espécies vivas catalogadas. Para que isso aconteça precisam se valer tanto de ferramentas físicas como de abstratas (essas mesmas). No segundo caso encaixam-se as mais evidenciadas na história no aspecto religioso, a ideia da vida eterna e da realidade dos deuses. A depender do seguimento cúltico e da doutrina produz-se determinada concepção do pós-morte como também da comunicação das entidades supremas. Normalmente se apela para esses dois vieses para satisfazer lacunas existenciais que surgem com descontroles naturais como catástrofes, pandemias e outros. Diante do momento em que se passa a situação anormal surgem novas teorias míticas ou são reforçadas as que já existem. Quando a anormalidade se finda essas mesmas interpretações são usadas para analisar o passado breve e tentar dar um sentido maior para todos os acontecimentos e, no caso humano, sempre centralizando e comunicando as informações, motivos, fatos e dados dos ocorridos com o sentido do próprio existir.

André Francisco

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