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sexta-feira, 19 de julho de 2019

Análise Exegética de Dt. 12,13-19


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1. Certamente, o discurso deuteronômico está em relação polêmica com os discursos sacerdotais, porém, mais uma vez, devem se perceber os limites da categoria de dessacralização. O fato do Código Deuteronômico não se ocupar de detalhar os rituais sacrificiais não pode ser interpretado como forma de secularização da religião sacrificial, ou como uma forma de escapar do ambiente “mágico” (termo também inadequado) da literatura da tradição sacerdotal

2. O caráter sagrado das ofertas – ou seja, sua destinação ao consumo perante a divindade – permanece, mas é transritualizado. Assim, o que é alterado é o impacto socioeconômico das ofertas. Ao invés de servirem quase que exclusivamente ao sustento do ritual institucionalizado e controlado pelo Templo e/ou Estado, passam a servir primariamente para a manifestação de solidariedade para com os empobrecidos. Por isso se destacam nesta lei a alegria e a solidariedade que devem formar o meio-ambiente do culto. A alegria é, primeiramente, consequência da bênção de YHWH, recebida no espaço cotidiano, e celebrada no espaço litúrgico, especialmente através da refeição – que estabelece também laços de solidariedade com as pessoas dependentes, que passam a participar do excedente da produção, consumido no culto, e não na tributação. 

3. Alegria e solidariedade não podem ser separadas segundo a concepção deuteronômica de vida e culto. É bastante provável que a concepção deuteronômica da alegria tenha se desenvolvido em polêmica contra discursos estatistas e litúrgicos sincretistas. Muffs destacou a presença da alegria em documentos mesopotâmicos de doações de superiores sociais a subalternos:

Em muitos dos assim-chamados documentos kudurru (monumentos fálicos usualmente cobertos com símbolos divinos), nos quais reis davam terra a cortesão, ou reis ou deuses outorgavam renda a sacerdotes; a fim de assegurar a finalidade da doação, as manifestações físicas de alegria/vontade do doados são descritas em detalhe [...] reis, sacerdotes e cortesãos, todos recebem seus dons incontestáveis através da ‘alegria’ de seus mestres, humanos ou divinos.
4. Não é possível estabelecer com precisão uma relação interdiscursiva com tal concepção estatista mesopotâmica, mas ela não é absolutamente improvável. Fica aqui a menção da possibilidade, sem, porém, afirmar positivamente a sua existência. É mais provável a relação interdiscursiva destacada por G. Braulik que notou esta característica veementemente, contrapondo a concepção deuteronômica da alegria com a presente – também em forma interdiscursiva não mostrada – em textos como Os 9,1; Is 22,13; 9,2 e 30,29. Em Os 9,1 “Não te alegres, Israel: não exultes como os povos! Porque tu te prostituíste longe de teu Deus, amaste o salário de prostituta em todas as eiras do trigo”, a polêmica é contra o culto baalizado a YHWH, no qual “a alegria se degenerara em êxtase cananeu. O regozijo e o alarido incontroláveis vinham da ‘cananeização’ do culto”

5. Já em Is 22,13 e 30,29 a denúncia profética se dirige contra, respectivamente, o povo de Jerusalém que se alegrara com a sobrevivência da cidade sob o cerco de Senaqueribe, apesar da destruição de quase todo o interior (lamentada por Miquéias em 1,89.10-16), e contra a Assíria e seu discurso imperialista. Não é possível, portanto, entender a ênfase deuteronômica na alegria litúrgica como uma forma de legitimar a centralização do culto no Templo de Jerusalém, especialmente com a negação da celebração familiar da Páscoa. Mais uma vez, é preciso citar Braulik, que percebeu bem a relação entre alegria e bênção, e destacou que 

Quando o Deuteronômio reconhece YHWH tão entusiasticamente como o doador de todas as bênçãos, isto é o resultado de um tremendo conflito. É YHWH, não Baal, que outorga fertilidade e sucesso ao esforço humano. O mandamento para regozijar-se – o núcleo mesmo do culto israelita – também é orientado na direção do ‘primeiro mandamento’, o principal mandamento.
6. Assim, a determinação de um único lugar legítimo para a adoração sacrificial cumpre uma função mítico-teológica fundamental: prevenir os judeus de se deixarem levar pela idolatria e/ou pelo poli-javismo. A adoração, nos vários santuários regionais, era oportunidade para o sincretismo religioso, e para a identificação de YHWH com Baal ou outros deuses. Para o movimento deuteronômico, a unicidade do lugar de culto seria uma garantia de ortodoxia cúltica e teológica. O alvo dessa proposta não é, como alguns defendem, primariamente a idolatria “popular” praticada pelos habitantes das vilas do interior. É, sim, a idolatria assumida e/ou promovida pelo Estado monárquico ao adotar a mentalidade assíria.

7. Mais importante, porém, é que este lugar seria garantidor da ortopraxia, ou seja, da unidade do povo, conseguida mediante a justiça, fruto da solidariedade – tema que retornará enfaticamente na seção de 14,22-15,23 que une leis cúlticas com leis econômicas, em um arranjo plenamente compreensivo e coerente à luz da concepção deuteronômica do culto adequado a YHWH. Este jogo dos espaços sagrados (litúrgico e cotidiano) aponta para o tema, a meu ver, fundamental, do projeto cúltico deuteronômico: a reorganização do espaço sagrado, de modo a criar condições para a plena vivência da bênção divina e da unidade do povo, obediente à vontade de YHWH.

 8. Assim, novamente, a determinação de um único lugar legítimo para a adoração sacrificial cumpre uma função mítico-teológica fundamental: prevenir os judeus de se deixarem levar pela idolatria e/ou pelo poli-javismo.

André Francisco

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Da alma- Platão, a igreja e Descartes


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1. O conceito grego de alma esfaleceu-se profundamente com René Descartes. A partir de uma visão inovadora e mecanicista do mundo, fruto de projetos anteriores como de Galileu, talvez pela forma do filósofo lidar com a superioridade da mente em relação à simplesmente máquina do corpo, propôs uma nova maneira- ou apenas o despertamento-, de se tentar entender a linha tênue entre o sentido de cognição do mundo aparentemente real (cogito, ergo sum) e do eu existencial que surgiria posteriormente na discussão moderna, pouco menos apenas metafísica. A proposta das máquinas naturalmente ligadas arbitrariamente como peças de uma engrenagem completa reduziu a diferença básica que reinou durante séculos de Era Platônica, o dicotomismo puro entre alma e corpo, ideal e real.

2. Platão (antes Heráclito e Parmênides, embrionariamente; com aprimoramentos necessários) foi comentado por séculos. A extensão sobreviveu principalmente pela cristianização da metodologia filosófica desde primórdios depois de Cristo. Cada comunidade religiosa “ocidentalizada”, valendo-se, não só, de escolas de Atenas, mas do Norte da África, e a partir do uso do latim, reproduzia a defesa do sentido da eternidade do metafísico humano e da finitude daquilo que “material humano”. Distinção que nutriu basicamente a concepção da tripartição defendida pelos pais da igreja,-Agostinho em destaque- e escolásticos com seus motores naturais e imutáveis; Tomás de Áquino. Energia canalizada não só para a discussão da alma, mas trindade e formas de governo eclesial e até do Estado (Montesquieu é possível que não, a partir exclusivamente dessa fonte, pelo menos, pois trataria do social sem espiritualização).

3. Intuição, raciocínio, memória, cosmovisão, o natural, o além do físico, as ideias, eterno e finito, perfeito e imperfeito fazem parte do arcabouço completo das hipóteses das quais o filósofo se valeu especialmente em “A República” para dicotomizar o indivíduo humano e valorar de formas distintas coisas que fazem parte do mesmo ente. Inimaginável pensar, para ele, que ideias e a vida cotidiana poderiam surgir do mesmo conjunto básico originário. O que é sensível deveria estar ao alcance do natural, do mundo tangível, da estrutura menos complexa e mais facilmente assistida. Já no outro espectro, muito além do comum, as ideias com suas representações perfeitas e completas daquilo que, aqui, apenas se tem uma especulação com sombras. Em “O Mito da Caverna”, dualiza essas realidades a partir da alegorização daquilo que propunha como “transcender o plano mutável dos objetos físicos” a fim de atingir a realidade sem cor, impalpável, guiada pela inteligência.

4. Na esteira desse sentido enraiza-se brilhantemente o platonismo de Paulo de Tarso na instituição que reproduziria por séculos o pensamento do dual,-claro que com abrangência também ao campo tricotômico a fim de necessariamente listar o tema “espírito”. Importante destaque por se referir não apenas à hipótese do conhecimento humano e do além, objeto primordial da análise helênica; mas religiosa, conquanto tratassem de precedentes que faziam parte também de outra cultura: a dos hebreus. Alma, nesse momento, aprimorou-se até atingir níveis de contato direto com o sagrado, dentro da perspectiva litúrgica. Caso o corpo, que, segundo a escola grega em foco, é o instrumento do contato horizontal com a realidade, fosse estimado a participar de laços mais puro e eterno ao divino no pós-morte, deveria ser em uma estrutura robustecida e nova, menos frágil e limitada: o “novo corpo”.

5. O aprimoramento posterior dentro da igreja cristã apenas customizou a ideia de alma deixando-a mais abrangente e complexa. Detalhes a mais foram fervorosamente alvos de debate durante todo esse tempo, não se eliminando Platão, Paulo e os que vieram com o tempo. No mecanicismo, as bases da discussão foram modificadas, pois a abordagem já não se limitava unicamente à especulação livre, porém às metodologias novas as quais tornar-se-iam colunas do cientificismo vindouro. O conceito de alma esfaleceu-se a partir de Descartes que é um dos principais defensores, e até hoje nunca mais foi tratado apenas a partir do mundo das ideias e sua relação com o natural, como também do eu com o divino.



André Francisco

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