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sexta-feira, 25 de maio de 2012

Não é bom que o homem esteja só, nem Eu(l)



1. Quando se começa a ler a Bíblia Hebraica, logo de início, percebe-se, com clareza, que existem duas narrações distintas da criação. Ou seja, dois pontos de vista, de autores diferentes, em épocas separadas, com pressupostos próprios, mas que objetivavam descrever "acontecimentos" incipientes, como as coisas passaram a existir. A primeira inicia  e termina de Gn 1.1 à 2.3. A segunda inicia e termina, se é que termina, (pode-se estender, com o mesmo autor, ou, pelo menos, com as mesmas fontes, até Gn 11, exceto, em alguns poucos pedaços; ex: Gn 6, diversas fontes, ou 9) de Gn 2.4 à 4.26?. 

2. Pois bem, analisar detalhadamente essas narrações não é o caso aqui. No entanto, deve-se notar que, na segunda narrativa, recheada pelo gênero mítico-literário, existe a tão celebrada frase edênica do “não é bom que o homem (אָדָ֖ם) esteja só...” 2.18. Yaveh Elohim, em uma de suas caminhadas através do jardim, percebeu que todos os animais que havia formado tinham suas “esposas” e “esposos”, estavam acompanhados, tinham com quem compartilhar suas afetividades de espécie, em questões de “multiplicação”, de coito, claramente. Porém, o pobre do אָדָ֖ם estava sozinho, somente realizando sua tarefa de nomear todas as coisas (será que ele conseguiu dar nome ao urso-polar, ou à baleia-azul? Não vem ao caso à discussão). 

3. Mas, em um lindo dia, Yaveh Elohim deu calmante a sua criatura, e fez, de sua costela, uma auxiliadora, que compartilhasse sua existência com ele. Só em questão de ressalte, essa história é um tanto quanto diferente, em se tratando de como tudo surgiu, se comparada com a de Gn 1.26, onde elohim criou, logo de cara, dois seres humanos, homem e mulher, como salientado em 1.27, e onde nenhum jardim é citado, e sim, a terra e todas os seus pecúlios naturais, Gn 1.28-29. Então, אָדָ֖ם fica satisfeito por ter alguém da mesma espécie sua אִשָּׁ֔ה, naquele lugar paradisíaco. Assim, a história se segue e todos sabemos o seu final. Contudo, há um aspecto interessante aqui. A criatura recebe sua companheira e o Criador não? Como isso se dá?

4. Em muitos momentos, Israel pensou a respeito enquanto vitalizava e normatizava sua identidade religiosa. A tão condenada, principalmente a partir da “monoteização” da religião nacional, deusa Aserá, já foi esposa de Yaveh em grande parte das histórias antigas. Antes de se falar disso, tem-se que desemaranhar algumas coisas. Primeiro, a deity El, primeiramente dos cananeus, depois incluída no panteão, então politeísta hebreu, era o deus-chefe e esposo da deusa. Reinava soberanamente, cuidava bem dos seus 70 filhos menores, inclusive (Baal, Anat, Yerak, Shapshu, etc). Esse El é o mesmo traduzido por “Altíssimo”, em versões da língua portuguesa, em textos mais remotos. O mesmo a qual Melquisedeque era sacerdote e Abrão lhe conferiu dádivas e reconheceu-o como “possuidor dos céus e da terra” (Gn 14.18-20). 

4. Tá, El, em um estágio primitivo do pensamento sagrado, distribuiu uma nação para cada um de seus filhos, destacando-se que Yaveh também estava na lista. Isso está bem nitidamente comprovado, em fonte P, no Dt 32.8-9: “Quando o Altíssimo (חֵ֤ל – El) distribuía as heranças às nações, quando dividia os filhos de Adão uns dos outros, estabeleceu os termos dos povos, conforme o número dos filhos de Israel; Porque a porção do Senhor (יְהֹוָ֖ה – Yaveh) é o seu povo; Jacó é a parte da sua herança”. Então, nessa época aí, em que El era o mandachuva, Aserá era sua esposa. Porém, entre o século VIII e VI, até V, quando Yaveh passou a ser reconhecido como o único El (Dt 6.4), sendo identificado/ assemelhado ao último referido da antiguidade (Ex 6.3), e quando as afirmações passaram a ser do tipo “fora de mim não há outro” (Is 43.11), o povo, instantaneamente, transferiu a esposa do pai para o filho. Assim, começou-se o culto à deusa, como esposa do único deus (1 Rs 14.23; 2 Rs 17.10). 

5. Nesse momento, o Yaveh lá do Éden, que passeava sozinho por entre as árvores dos campos, recebeu sua companheira e também não permaneceu alone. Essa identificação do povo com uma deusa, ou seja, entidade superior feminina, fazia-se necessária mesmo diante de uma sociedade completamente machista. Para se parar de atribuir características femininas a Yaveh, como muitos fizeram (Is 49.5; 66.7-13), nada melhor que adorar a figura de uma deusa. Alguns problemas também surgiram ao longo do tempo: quem seria a esposa de Yaveh

6. Monoteisticamente falando, não havia possibilidade da deity ter esposa, ou seja, ela tinha de ser sempre solitária. No entanto, para que a deity não ficasse só, fizeram-se arranjos. Outra esposa, com o rosto de deusa maquiado, foi lançada no panteão. Citada claramente em Provérbios 8.22- 31, em um tom de um beau roman, a sabedoria personificada, כְמָה chmh, (por que não tratar como nome próprio, à Gn 2, em que o homem foi feito Adão?) está lá, compartilhando de todas as belas criações de Yaveh (esposo?), totalmente personificado, como de costume em muitas literaturas sapienciais judaicas. Assim, percebe-se que ninguém nasceu pra ficar só, até mesmo a deity, que não nasceu. Ou seja, nem Eu(l).

André Francisco

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